Sem saída

Vivenciar o presente pode ser sinônimo de vivenciar o desagradável, o despropositado e ameaçador. Situações de guerra, assalto, doença, desastre deixam isso bem claro. Essas ocorrências determinam  ansiedade e medo - que é a omissão diante do que ocorre - ou determinam coragem e participação. Ter medo é se omitir, é colapsar, sumir diante do que está acontecendo. Isso se dá, muitas vezes, no desmaio, no desespero, nos gritos e nas rezas obstinadas. Havendo participação não há medo: enfrentamos ou fugimos, às vezes única maneira de enfrentar, mas ainda assim, ação.

Quando não temos metas - ou seja, planos e desejos a realizar no futuro, que não têm estrutura na própria realidade - não estamos divididos ao vivenciar o presente. Essa organização nos permite não colapsar com os impactos, o caos, a desorganização que está acontecendo no presente. Essa atitude cria perspectiva de vida responsável pelo descongestionamento; "o grande horror" que acontece adquire proporções menores, suportáveis e começa a ser percebido como obstáculo a ser resolvido, a ser neutralizado ou contornado.

Kurt Lewin relata o que aconteceu com os judeus alemães diante da escalada destruidora do nazismo e do antissemitismo na Alemanha. Esse caos social desumano levou vários judeus a cometerem suicídio. Ao perderem toda e qualquer perspectiva de vida abreviavam o final terrível que parecia inexorável. Frequentemente essa atitude era a do judeu assimilado. Lewin nos relata que o judeu apoiado em sua tradição religiosa, em sua história, sabia que o que estava acontecendo era mais uma perseguição. Durante cerca de 5 mil anos outras já haviam ocorrido e seu povo sobreviveu. Perceber esse processo serviu de respaldo, abriu perspectivas e fez com que resistissem ao desespero, resistissem à vontade de desaparecer, de sumir, mesmo com o sacrifício da própria vida. Esse estudo de Lewin foi eloquente no sentido de mostrar que o caos pode ser organizado, que o respaldo surge da própria história individual. O judeu assimilado à cultura germânica achava impossível haver tais perseguições dentro de uma sociedade tão civilizada como a alemã. Os que estavam apoiados na tradição judaica, sabiam do antissemitismo que sempre existiu nas diversas culturas e sociedades. A vivência do terror não foi inesperada para eles, tinham o processo histórico como contextualizante.

A vivência é sempre do presente mesmo quando se recorre à memória. Na situação do presente aterrorizante, reduzido ao fato, a lembrança, a memória (recordações são vivências presentificadas, são prolongamentos perceptivos) estrutura um novo contexto que permite a percepção do que ocorre, no caso o caos, de uma maneira nova, responsável por continuidade, consequentemente por perspectiva de vida.

Na vivência pontualizada do presente como sem saída, os pontualizadores podem ser situações presentes neutralizadoras de perspectivas, ou podem também ser situações de memória, presentificadas sob a forma de medo e pânico. Em um de seus escritos, Kafka nos conta que ao esperar a execução na forca para o dia seguinte, o condenado, não querendo passar pelo que o aguardava, na véspera se enforca em sua cela.

Qualquer situação absurda possibilita enfrentamento ou crise, tudo vai depender de se estar inteiro ou dividido na vivência do presente ameaçador. Quando o passado superpõe-se ao presente, mesmo que sob forma de esperança, ele divide, consequentemente aliena do presente, criando ansiedade pela necessidade e espera da saída. Quando o passado alarga o presente surge perspectiva, surge o futuro; a redução ao que está acontecendo, o estreitamento é alargado e novas configurações surgem neutralizando o sem saída e estruturando coragem, tenacidade, resistência.















"O Holocausto", Martin Gilbert
"O Terceiro Reich no Poder", Richard J. Evans

verafelicidade@gmail.com

Comentários

  1. Vera, seu texto é excelente, mais uma vez. E no meu ver responde minha questão que fiz nos comentários ao seu texto Hybris e onipotência, que é justamente a atitude de coragem e participação que gera mudança diante de obstáculos, de ameaças – diferente de onipotência, atitude cega de intolerância e fanatismo. Quando li a primeira vez em um dos seus livros a conceituação de medo como omissão isso me permitiu enfrentar situações desagradáveis e despropositadas com clareza e firmeza do que estava fazendo. É realmente incrível pensar e compreender tudo isso, relacionando com os fatos cotidianos que acontecem com a gente.
    Você citou Kafka no sentido do homem que nega a situação sem saída. Eu lembrei de Albert Camus. Em O Estrangeiro há o colapso do mundo ideal, pois o protagonista vive uma situação de crise – Meursault, sem ter escolhido viver, num mundo aparentemente absurdo e estranho, é condenado à morte. Em uma situação onde não há saída, parece se dar conta de seu amor pela vida: “Ao sair do Palácio da Justiça para entrar o carro, reconheci por um instante o cheiro e a cor da tarde de verão. Na obscuridade da minha prisão rolante, reencontrei um a um, no fundo do meu cansaço, todos os ruídos familiares de uma cidade que eu amava e de uma certa hora em que me ocorria ficar contente” e também “Aromas de noite, de terra e de sal refrescavam-me as têmporas. A paz maravilhosa deste verão adormecido entrava em mim como uma maré”.
    Meursault enfrenta o beco sem saída. Como que em uma vingança ao Status Quo, à hipocrisia vigente na sociedade e na religião institucionalizada, diz ao final: “Para que tudo se consumasse, para que me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muitos espectadores no dia da minha execução e que me recebessem com gritos de ódio”.

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  2. Vera, este artigo foi uma surpresa muito bem-vinda!

    Tem sido tão comum nas últimas 3 décadas, se falar em viver o "aqui-e-agora", não só entre psicoterapeutas mas também em ambientes alternativos de toda sorte: as comunidades dos anos 70, espiritualistas, naturalistas, orientalistas... enfim, é como uma panaceia, uma palavra de ordem que resolve tudo.

    E você levanta esta questão impressionante, de um presente assustador, desesperante, terrível, mas que ainda assim precisa ser aceito. Entendo, depois da leitura de seus textos, que para viver o presente é preciso aceitar estar existindo "daquela forma", seja ela qual for; só assim é possível não se omitir e também não sonhar com o impossível. Esta sua abordagem é muito mais que "palavra de ordem" e por trás da simplicidade da sugestão de "vivenciar o presente" temos um pensamento consistente e experiente como demonstra este artigo, que se entendi bem, vai um pouco além da explicação da "aceitação" como base da vivência do presente, sugerindo a abertura de perspectiva através da memória quando aceitar o presente é aterrorizante. É isto? Entendi que nas situações terríveis e desumanas, esta perspectiva é necessária.

    Abraço

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  3. Vera, adorei este texto, só perde para o "O denso e o sutil" que ainda é meu favorito! rs.

    Ana, gostei bastante do seu comentário, aliás, tenho acompanhado todos e sempre gostado.

    Bjs.

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  4. Augusto, você diz em seu ultimo comentário postado: "Quando li a primeira vez em um dos seus livros a conceituação de medo como omissão isso me permitiu enfrentar situações desagradáveis e despropositadas com clareza e firmeza do que estava fazendo". Não sei se tal ocorreu: as vezes se considera omissão o que é desejo ou é pretexto. Nao sei se o que você vivenciou se refere ao que conceituei como medo.

    Kafka não fala do homem que nega a situação sem saida. Ele nos conta o que se pode fazer para sair de uma situação considerada sem saida, esta é a arte do Kafka, de sua literatura, é tambem a razão do vocábulo "kafkaniano".

    Nossa discussão no artigo Hybris se referia a minha afirmação de que aceitação também é ação antitética, repito, só é possível transformar se primeiro aceitar. O que a Ana comenta aqui neste artigo sobre aceitação, talvez lhe esclareça.

    Abraço

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  5. Realmente, Ana, seu comentário deixa claro como o clichê 'viver o aqui-e-agora' e outros equivalentes como 'não se reprima, expresse sua raiva', são tiques verbais que nada explicam, nem resolvem. Você entendeu certo sim, mas tudo sempre vai começar com aceitação do que está sendo vivenciado, que no caso do terror pode ser uma abertura para a memória e esta consegue ou não ampliar o presente.

    Abraço

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  6. Vera, minha vivência de certa maneira deflagrada pela leitura do seu livro foi encontrar clareza para enfrentar situações das quais estava me omitindo, como que acovardado. Foi muito bom, senti uma paz e integridade interior. Não me refiro criar um conflito, mas ver de frente e buscar resolver, que foi o que fiz, daí creio que era medo mesmo. Grato por me esclarecer sua citação de Kafka, eu tinha entendido como negação, fuga, pavor. Compreendo aceitação como você e Ana dizem. Sem aceitar não se muda, há tempos penso assim. Abraço, Augusto.

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  7. Oi, Vera
    Peço desculpas pelo texto enorme e pelo relato “trash”, mas não pude deixar de associar seu texto ao filme que vi na aula de hoje a noite.
    Bem, hoje assisti a um filme na faculdade chamado “127 horas”. Lembro que, há algum tempo, vi o trailler no cinema e pensei “jamais vou ver esse filme, quanta angústia”, porque achei que já tivesse esgotado minha cota de filmes de sobreviventes quando vi “Vivos”, a história dos sobreviventes do avião que caiu na Cordilheira dos Andes. Pois bem, eu já estava na aula, a aula seria o filme e o filme era esse, então fiquei.

    Sinopse: Um rapaz que faz alpinismo, trilhas e esportes radicais vai sozinho para os cânions e acaba se acidentando, ficando preso em uma fenda nas rochas com o braço preso embaixo de uma pedra. O filme é isso: o rapaz preso por 127 horas e, no fim das contas, consegue sair porque corta o próprio braço. É baseado em fatos reais.

    No momento do filme em que ele fica preso e se percebe naquela situação, lembrei do texto de hoje: sem saída! Era exatamente essa a situação.

    Após algumas tentativas de escapar, ele percebe que a única saída é cortar o próprio braço. Ele até tenta, mas não consegue nas duas primeiras tentativas. Percebe as dificuldades: só tem um canivete cego. Na primeira vez, ele fica tentando cortar a pele e não consegue, então desiste e continua preso ao problema. Na segunda, ele consegue enfiar o canivete no braço, mas percebe outro obstáculo: o osso. É impossível cortar o osso com aquela faca. Então desiste novamente e fica lutando com a situação. Nessa fase, tudo é obstáculo, nada do que ele tenta dá certo, não há mesmo perspectiva. “Na vivência pontualizada do presente como sem saída, os pontualizadores podem ser situações presentes neutralizadoras de perspectivas.”

    O drama se desenrola, ele tem devaneios, lembranças, momentos de ira, de desespero, de medo... Ele está diante de um “presente desagradável, despropositado e ameaçador”. Passa pelo desespero, grita, fantasia não estar ali, culpa-se por não haver avisado para onde iria... Nada disso, evidentemente, o tira da situação.

    A meta dele, nesse momento, é sair daquela situação, por isso concentra toda sua energia, seu raciocínio, sua experiência, seu conhecimento em sair dali. Não deu certo, nada funcionou. A princípio, nem mesmo cortar o braço ele conseguiu, pois estava na meta de sair, escapar, não estar ali. Ele pensa no Gatorade que está no carro (para matar sua sede), na festa que ele não poderia ir, na comida que queria comer, no telefonema da mãe que não atendeu, no amor ao qual não se entregou – ele estava preso ao passado, desejando um futuro que não tinha estrutura para alcançar e preso à necessidade de sobrevivência. Nesse momento, havia “ansiedade pela necessidade e espera da saída.”

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  8. No entanto, em determinado momento ele aceita o contexto, se liberta da vontade de sair como meta a que estava obstinado, vivencia o presente aceitando os limites. Nessa hora ele tem um insight: entende que, se quebrar o braço, conseguirá sair. É tomado por coragem, consegue fazer o que precisava ser feito e sai da situação “sem saída”. Assim que se liberta da pedra, ele olha para seu “cativeiro” e agradece.

    Como o condenado do relato de Kafka, ele poderia ter se matado. Mas ele enfrenta.

    “Na situação do presente aterrorizante, reduzido ao fato, a lembrança, a memória (...) estrutura um novo contexto que permite a percepção do que ocorre, no caso o caos, de uma maneira nova, responsável por continuidade, consequentemente por perspectiva de vida.” Creio que as lembranças que ele tem da família e outras estruturam esse contexto ensejador de uma percepção nova, que traz perspectiva de vida. Pelo menos é o que parece.


    Pode parecer bobo, mas ver o filme pensando nesse texto, pensando na aceitação dos limites, do contexto, é outra história! Eu realmente fiquei muito feliz por ter visto esse filme justo hoje, depois de ter lido seu texto, Vera. Teria sido pobre sem seu texto, mas foi fantástico!

    Também achei lindo foi ver que esse é um exemplo de situação em que a pessoa é quase obrigada a aceitar o contexto. É claro que sempre podemos não aceitar ou não aceitar que não aceitamos. Mas nesse exemplo a coisa é tão concreta, o limite é tão duro – uma pedra prendendo uma parte do seu corpo e lhe obrigando a ficar em um lugar ermo – que choca. E esse choque evidencia o contexto, o limite é gritante e parece cobrar uma aceitação. A saída da situação sem saída é aceitar a falta de saída. Então, pode haver saída.

    “Aceitar o que limita implica em poder transformar o obstáculo, implica em mudar.”

    É isso. Não sei se “viajei” demais, mas foi bacana ver o filme pensando em seu texto.

    Abraços!

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  9. Bom exemplo Clarissa, você apreendeu bem a totalidade da questāo enfocada no meu texto: o presente como horror, como limite total, transformado ou nāo. Foi possível isso por você nāo ter parcializado em aspectos, impressões etc.

    Só para pensar, foge um pouco do tema que abordei, mas talvez o rapaz do filme "127 horas" mais tarde venha a pensar que existem situações às quais é melhor nāo sobreviver. O problema do contexto, da estrutura é muito importante. Alargar limites em uma estrutura sobrevivente é uma, alargar limites em uma estrutura com dimensões existenciais, é outra.

    Abraço

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  10. Obrigada, Vera! Vou pensar sobre a questão que você colocou. Abraços.

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  11. Vera, pensando sobre o filme "127 horas", eu entendo que o rapaz, para ter o insight de quebrar o osso, teve de se deter no presente, na situação em que se encontrava. Mas ainda sim me pergunto: o rapaz do filme realmente aceitou a situação sem saída? Isso está meio confuso pra mim. Se ele tivesse aceitado teria se resignado e entendido que iria morrer, não? Ele não aceitou que iria morrer e alargou o limite. Ok, ele não morreu (é um vencedor), mas ficou vivo ao custo de um braço que ele mesmo teve que cortar! Talvez ele não tenha nem percebido o horror que é ter de se mutilar pra continuar vivo. É como a situação das pessoas do filme "Vivos". Ora, ter de viver ao custo de comer carne humana? Será que não era preferível morrer?
    Ter o rapaz do filme alargado o limite de uma estrutura de sobrevivência, foi na verdade uma não aceitação (alargamento) do limite de dimensão existencial, ou seja, foi a não aceitação da realidade, não? ou eu estou confundindo tudo?
    beijos

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  12. Olá Vera, reli seu texto, comentários... lhe confesso que esta leitura tem me causado vertigens que só uma sessão de terapia com você poderia  esclarecer... ;-) 

    Gostei muito de você mencionar que "existem situações as quais nāo vale a pena sobreviver"... e entendo que isso nāo significa negaçāo ou omissāo. Se conseguirmos pensar sem valores (isso é possível?) e sem desejo de resultados, a vivência plena do presente, seja ele qual for, é em si plenitude, suficiência; e a partir disso é possível ser saída o personagem de Kafka se matar na véspera, judeus viverem ou se matarem nos campos de concentraçāo, tudo vai depender disto que você define muito bem como a estrutura de sobrevivência ou existência de cada um e entāo, o mesmo ato (morrer ou viver) vai significar saída ou nāo. 

    Nāo sei se me fiz entender, acho esses temas muito difíceis, sejam grandes problemas históricos como holocausto e genocídios, sejam grandes dramas individuais, parecem minimizados quando analisados ou descritos a nāo ser que o sejam por gênios como você e Kafka que nos levam a profundezas contemplativas.

    Abraço

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  13. Oi, Natasha. Estava esperando a resposta de Vera, mas não me aguento, então vou dar minha opinião, rs. Eu acho que a questão não é aceitar ou não aceitar que iria morrer. Quando eu penso em aceitar o contexto, penso em aceitar que está preso e tudo o que envolve ele ali preso, inclusive a morte, mas não só a morte. Se estar preso o levaria a morrer ou não, dependeria de muita coisa. Também não acho que a aceitação deva ser vista considerando apenas os fatos pontuais: estar preso assim e assado. Acho que o contexto é mais do que os fatos. Ele entendeu que quebrando o braço sairia daquela situação. Outra pessoa, na mesmíssima situação, poderia ter tido o insight de que "é isso então, vou morrer e tudo está ok", porque seria ela e não ele. Lendo esse relato, ficamos presos apenas aos fatos, mas ver o filme é diferente. Dá para entender que o quebrar o braço, para esse rapaz, nesse filme, pode ter nascido de uma aceitação. Mas acho mesmo que cada caso é um caso.

    É isso, sinto que a aceitação não está presa a uma resolução – conseguir sair ou aceitar a morte. Depende da condição global: a pessoa e tudo o que envolve a situação presente e sua história também. É assim que vejo, mas realmente não sei. Fiquei um pouco confusa com o que vc colocou e ainda pensando na questão que Vera colocou antes. Abraços.

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  14. Natasha, eu nāo vi o filme "127 horas", mas sigo o resumo que a Clarissa fez. Vamos ver a situaçāo que você coloca: qualquer situaçāo que se vivencia é presente, mesmo que invadida por dados de memória ou deslocada, ampliada para o futuro: metas ou perspectivas. A vivência do presente sem saída é responsável sempre por alargamento ou colápso sob a forma de impotência, aceita ou nāo. O personagem aceitou a nāo saída e tentou uma saída. Aceitaçāo nāo é sinônimo de acomodaçāo. Para ele, dentro da avaliaçāo que fez, valeu a pena cortar o braço e se salvar. A vida a qualquer preço, ou o valor pago - braço - era pequeno, valeu a pena para ele, foi uma saída continuar vivo. Perder um braço, perna etc enfim, qualquer "mutilaçāo", como você fala, é válida, sequer pode ser vista como "mutilaçāo". A questāo é quando se absolutiza: tudo pela vida, tudo pelo dinheiro, tudo pelo status, tudo pelo amor. Essa unilaterizaçāo é que mutila, parcializa o humano. O rapaz do filme, alargou o limite do presente e sobreviveu; acho que para ter o vigor da açāo que ele teve para se salvar - absolutizaçāo da vida - foi  por ele ser fundamentalmente sobrevivente, só neste nível o relacional se absolutiza em funçāo das necessidades e omissões, vazios a preencher. Pode ser que depois, ao se relacionar com o que fez e capitalizar resultados, ele valide o fato de ter sobrevivido ou nāo. Sempre tudo se relaciona com tudo e nāo se pode perder isto de vista. Suas indagações e dúvidas decorrem da necessidade de resultados e explicações; neste momento surgem as âncoras como fundamentais - é o posicionamento. Acho que o caso do protagonista do filme é o esilo verde/vermelho, nada pastel, poucas nuances, é a história que fala em favor de alguém para quem sobreviver é fundamental.

    Beijos

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  15. Ana, realmente muitas coisas só em terapia, à começar pelo fato de saber o porque da vertigem etc etc Mas vamos lá, vou tentar responder à complexidade de questões que você levanta. Falei para a Natasha que a absolutizaçāo da vida amesquinha o humano. Você pegou bem  "... a certas situações não vale a pena sobreviver" e  isso nāo é negaçāo ou omissāo.

    É possível pensar sem valores sim, basta que nos detenhamos na percepçāo. Quando nos situamos na percepçāo da percepçāo (categorizaçāo) significamos, valoramos, criamos ilhas. Quando percebemos o presente contextualizado no presente nāo há categorizaçāo, consequentemente nāo há valoraçāo, é o presente total. Os gestaltistas alemāes explicaram que tudo é percebido segundo a lei perceptiva de figura-fundo. O presente é figura e o fundo também é presente, dentro disso nāo há significados nem valores: se mata, se morre, se vive, corta o braço etc e como você diz, isso é saída ou nāo; o nāo categorizar é a questāo. A "profundidade contemplativa" que você falou, é a chave, desde que isto implique em disponibilidade e transcendência. Infelizmente a palavra contemplar ficou refém dos conceitos e grupos espiritualistas, aprisionadores do homem... mas isto é outro assunto. Contemplar a situaçāo presente é sempre disponibilidade, é estar diante de, sem objetivo, sem propósito, sem a priori. O presente no contexto do presente, por nāo significar, possibilita isto. Difícil é esta vivência totalmente presentificada. Nas situações de horror, impacto total, surge esta faísca, presente enquanto presente, que mais tarde contextualizada em outras dimensões possibilita mudanças, até mesmo saídas.

    Abraço

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  16. Oi Clarissa, aprecio seu esforço de escrever sobre os conceitos, mas está confuso. Sugiro ler o que respondi para Natasha e para Ana, vai melhorar algumas confusões e provavelmente criar novas... rs... até que insights virão.

    Abraço

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  17. (muitos risos) Com certeza vai criar novas! Obrigada, Vera! Abraço.

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  18. Vera, essa sua resposta foi muito boa pra mim, me fez ver o que eu não estava vendo! Entendi a questão da absolutizaçāo do relacional, da aceitação não ser sinônimo de acomodação e da mutilação nem poder ser considerada como tal no caso do rapaz do filme.

    Vejo que o meu julgamento da situação e atitude do rapaz estava seguindo um caminho muito contaminado pelos meus próprios valores (não cortaria o braço), pelo meu posicionamento e não levei em consideração o fato de sobreviver ser fundamental para ele. Então não consegui ver a coerência da atitude dele de cortar o braço, enquanto pessoa que absolutiza a vida. É esse o meu posicionamento, a minha âncora da qual você falou?

    beijos.

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  19. Que bom Natasha.

    Quando se absolutiza (a vida, o dinheiro, o status) se parcializa. Seu posicionamento e âncora, falados por mim, foram por causa de seus comentários sobre mutilaçāo física (nāo existe nenhum problema ser mutilado, a mutilaçāo nāo é uma deficiência, é um sinal de vida e de enfrentamento, de aceitaçāo de limite).

    Beijos

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  20. ah, tá bem, Vera. Obrigada. beijos.

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  21. Olá Vera, obrigada pela resposta e explicaçāo, sua noçāo de percepçāo e suas implicações sāo fantásticas. Entendo quando você critica a contemplaçāo como é explorada e massificada por orientalistas e concordo, mas nāo sei se por vício de pensamento e leituras, quando li sua descriçāo da "vivência do presente contextuada no presente", me lembrei de uma história zen-budista que para mim exemplifica de maneira simples essa atitude de "disponibilidade e transcendência" que você evoca, essa vivência do presente sem a priori: dois monges zen andavam à margem de um rio quando viram uma moça tentando atravessá-lo sem sucesso. Os monges têm severas restrições quanto a tocar ou mesmo conversar com mulheres, mas um deles simplesmente pegou a moça colocou ás costas e nadou até a margem oposta onde a deixou, voltando ao encontro do companheiro, continuando a caminhada tranquilamente. O monge que o acompanhava, transtornado, o questiona indignado depois de algum tempo: como você pode fazer aquilo, tocar naquela moça e ficar assim tranquilo? Ele respondeu: eu a deixei lá no rio há muito tempo, você a continua carregando.

    Bem, é uma história muito singela, talvez muito simplória quando penso nas graves questões que exemplificam seu artigo, mas pensando nestes temas do presente, da disponibilidade, do viver sem a priori... enfim, pensando no indivíduo, no  homem, me parece uma ilustraçāo. Com certeza a "vivência totalmente presentificada" é muito difícil.

    Abraço

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  22. Pois é Ana, sabe que quando a gente lê concentradamente e fruindo todo o escrito, temos uma vivência totalmente presentificada, passei por isto agora lendo seu texto.

    Abraço

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  23. Vera,
    Quis compartilhar...
    http://www.youtube.com/watch?v=0DRdxT7XE1E&feature=related.

    Beijos,
    Milena

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  24. Oi Milena, que bom que você compartilhou este vídeo significativo de tanta coisa. Muito obrigada.

    Beijos

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  25. Vera,
    Lendo o meu jornal matinal de todo domingo, me deparei com essa estória: http://www.guardian.co.uk/artanddesign/2011/oct/30/giles-duley-war-photography-afghanistan.
    Beijos,
    Milena

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  26. Impressionante a resistência do fotógrafo Giles Duley! O que você leu é um bom exemplo de encontro de saída. A vida dele, o trabalho dele, arrisco até a dizer os motivos de suas fotos constituiram-se em respaldo para suportar o inesperado/esperado. É um exemplo também de como as possibilidades humanas sāo infinitas. Escrever sobre a maneira como ele reagiu a tudo receberia o título de resistência, foco e objetividade (endurance). 

    Beijos

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  27. ;-) No aguardo então, o artigo sobre Endurance, que é bem diferente de obstinação, visto que o primeiro foca o presente, enquanto o último o foco é a meta a ser atingida!

    Beijos, Vera!

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  28. Quantos pensamentos interessantes há nesses comentários – food for thought. Viajei a trabalho e meu meu colega estava lendo o livro 127 horas e falou um tanto nele. Pensei na citação de Kafka e no relato do filme canadense As Invasões Bárbaras.
    Vera, vamos ver se entendi o que pode se passar em uma situação ameaçadora de vida ou morte, uta ou fuga. No seu site tem uma página com a questão de como se escolhe, e as perguntas se é (1) por acaso, (2) imposição contextual ou (3) experiência repetida (unilateralização apriorística).
    Entendi que esta última é o que você refere no seu artigo como o presente aterrorizante reduzido à lembrança, à memória, que pode estruturar um novo contexto que permite a percepção do que ocorre de maneira nova, encontrar uma saída, ou pode se manifestar como medo e pânico, que podem imobilizar o sujeito (nesse caso me parece o sujeito seria fundo e os agentes ou situação ameaçadora a figura).
    No caso de imposição contextual, é o indivíduo perceber o momento presente sem significado, apreendendo as relações de maneira instantânea, e ter um insight de como agir?
    Já o acaso, não sei como descrever, talvez a incerteza quântica onde ou a pregnância da memória ou o insight sobre as relações momentâneas podem ocorrer ...
    Aguardo seus comentários.
    Abraço,
    Augusto

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  29. Augusto, não é "o presente aterrorizante reduzido à lembrança..." como você escreveu. No caso do exemplo do meu artigo, o presente era o nazismo aterrorizante (o nazismo não estava reduzido a lembranças). As lembranças e memória do passado histórico eram o respaldo para enfrentar a situação. O cerne deste artigo é a abertura de perspectiva que pode surgir quando se está vivenciando um presente aterrorizante.

    Releia o parágrafo do artigo: "A vivência é sempre do presente mesmo quando se recorre à memória. Na situação do presente aterrorizante, reduzido ao fato, a lembrança, a memória (recordações são vivências presentificadas, são prolongamentos perceptivos) estrutura um novo contexto que permite a percepção do que ocorre, no caso o caos, de uma maneira nova, responsável por continuidade, consequentemente por perspectiva de vida."

    Se você não compreende o texto você não consegue transpor, faz confusão; o exemplo do meu site com a questão da escolha não se aplica a questão levantada por este texto.

    Abraço

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  30. Ok Vera, achei que houvesse uma ligação,

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  31. Ok Vera, grato mais uma vez pelos esclarecimentos. Eu estava buscando relacionar esse texto com outros que li, especialmente com a questão da memória e o que conduz uma pessoa a ter uma reação ou outra diante de uma situação limite.
    No parágrafo “Na vivência pontualizada do presente como sem saída, os pontualizadores podem ser situações presentes neutralizadoras de perspectivas ou podem também ser situações de memória, presentificadas sob a forma de medo e pânico. Em um de seus escritos, Kafka nos conta que ao esperar a execução na forca para o dia seguinte, o condenado, não querendo passar pelo que o aguardava, na véspera se enforca em sua cela.”
    Aqui achei que você descrevesse a situação oposta (por isso inicialmente interpretei a citação de Kafka como exemplo disso) mas está mais claro que esse tipo de vivencia pode ser causado pela situação presente ou situações advindas da memória – o presente realmente não possibilitando nenhuma saída, e a pessoa preferir morrer, ou a pessoa estar dividida, se alienar e não conseguir lidar com a situação devido à ansiedade, etc.
    Sim, reli o parágrafo, a vivência é sempre do presente, mesmo quando lembramos de algo é no agora. Como você diz essa vivência pode alargar o presente e estruturar um enfrentamento e busca de saída.
    Abraço, Augusto

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  32. Augusto, não há ligação entre o que eu escrevi neste artigo e a questão da escolha. Diante de situações como o nazismo, acidentes graves, genocídios e condenações a morte por exemplo, a questão da escolha não se coloca. Neste blog tem um artigo "Liberdade e escolha", esclarece e permite a globalização da escolha. No dia dia 'escolher', 'preferir' ou 'se motivar' são sinônimos, por isto a situação dos triângulos no meu site. Você se confundiu aí.

    Kafka é Kafka, como já lhe falei, inaugurou um vocábulo: kafkaniano; outra de suas confusões foi não perceber isso.

    Vivência é vivência, sempre presente, não é "causada pela situação presente ou situações advindas da memória" - como você escreveu - isto é causa e efeito, parcialização, distorção. O passado, a vivência de memória presentificada, é o respaldo que permite ou não ampliação de contexto.

    Abraço

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  33. Sim Vera, eu entendi que não há ligação entre escolha e o texto, descrevi meu processo de pensamento somente antes, já segui adiante Acho que entendi suas outras observações também. Um ponto, porém, ainda não ficou bem claro, com respeito ao que você disse no artigo: "Na vivência pontualizada do presente como sem saída, os pontualizadores podem ser situações presentes neutralizadoras de perspectivas ou podem também ser situações de memória, presentificadas sob a forma de medo e pânico."
    Isso entendi como o presente como realmente limitante (no caso das execuções nazistas, etc.) ou medo e pânico causados pela memória - mas também no presente - mesmo as lembranças ocorrem no presente. Foi isso que tentei dizer, do meu jeito. Mas se ainda não entendi fielmente, estou aberto aos seus ensinos.
    Abraço

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