Impaciência é indignação

Nem sempre impaciência é indignação, mas no contexto de cooptação, imagem e faz de conta, indignar-se, irritar-se, não concordar e lutar pelo que se discorda é atitude denunciante da acomodação sacramentada pelo politicamente correto.

Faz diferença dizer não, faz diferença dizer sim. Enfrentar combinações, regras e leis pode ser perturbador, mas é também questionador. Tudo que é explicado pode ser uma revelação, tanto quanto a explicação pode ser uma maneira de esconder o que não se quer que seja percebido.

Na intimidade do lar, no seio da família, quebrar o silêncio característico das omissões é visto como sinônimo de violentação à harmonia. Da mesma forma, estar bem com o colega de profissão, os pares corruptos e que abusam dos poderes profissionais é manter posicionamento que evita indignação, que ajuda a sobreviver. Muitas pessoas são prejudicadas para que se mantenham ajustes, mentiras e conveniências. Impotentes para mudar, para denunciar, resta a estes indivíduos aceitar, não criar problemas, não se expor. Esta moral de compromisso é construtora de imoralidade, de impunidade, de neurose - alienação. Impotentes, liquidados como vozes dissonantes, transformados em resíduos descartaveis, ficam sujeitos a processos de reciclagem; ficam sujeitos a adaptar-se, seguir a maioria sem indagações, com esperança de se controlar e medo de resvalar em lutas por causas perdidas. 

Civilizações clássicas, tradicionais, valorizavam a discordância; na China por exemplo, a maioria sempre vencia (50% mais 1, mais 2 etc.), salvo quando havia apenas uma discordância: em 10 pessoas, 9 a 1 por exemplo; sempre que o discordante percebia algo que a maioria não conseguia perceber, ele era considerado certo ou vencedor. Era o novo que se buscava.

Contemporaneamente, o diferente, o discordante, não significa. Oposição é transtorno, é considerado problema. Paciência e negociação para incluir, somar, acrescentar é o que interessa; resultados devem ser acumulados, ajustes devem ser conseguidos. Conviver bem com o já chamado lado B, o lado marginal do colega que vende ilícitos no trabalho é considerado saber viver.






"O Engenhoso Cavaleiro D. Quixote de La Mancha" (2 volumes), de Miguel Cervantes
"Mãe Coragem e seus Filhos", in "Teatro Completo" Vol.6, de Bertolt Brecht

verafelicidade@gmail.com

Comentários

  1. Ser uma voz discordante tem o seu preço, especialmente questionar as contradições dos superiores na hierarquia. A questão da integridade, da ética se impõe ao indivíduo. Alguns só desistem de lutar pela verdade, denunciar a imoralidade, jogar a toalha, se vêm que determinada situação não tem mesmo solução por que os imorais detêm o poder ‘legal’ de decisão e muito mais munição de calibre grosso – no caso do Estado até o monopólio ‘legítimo’ da violência, sob o controle de pessoas. Conviver com o ilícito, o imoral quando ele está no poder em uma organização é indignante e a pessoa pode escolher sair, abandonar o barco, buscar novas possibilidades profissionais e existenciais. Remete a questões éticas –Slavoj Zizek discorre no nível do indivíduo: como Anakin virou Darth Vader?
    Como nos diz Vásquez (1977), devo cumprir a promessa x que fiz ao meu amigo Y, embora hoje perceba que o cumprimento me causará certos prejuízos? ... Devo dizer a verdade ou há ocasiões em que devo mentir? Quem, numa guerra de invasão sabe que seu amigo Z está colaborando com o inimigo, deve calar, por causa da amizade, ou deve denunciá-lo como traidor? Podemos considerar bom o homem que se mostra caridoso com o mendigo que bate à sua porta e, durante o dia – como patrão – explora impiedosamente os operários e os empregados de sua empresa? A construção da imoralidade passa também pela covardia, pela conveniência, pelo medo de ser prejudicado ou perseguido por defender uma posição de integridade. Nas empresas, no mercado, na política, nas relações pessoais vemos isso no dia a dia. Os em cima do muro, os vingativos oportunistas, os covardes que querem agradar a Deus e ao Satanás ao mesmo tempo. Os que viram pessoas emasculadas em termos de consciência por que votam incondicionalmente com a maioria. O artigo impaciência é indignação descreve essas atitudes vaciladas e suas possíveis consequências. Muito bom, faz a gente pensar mais, se dar conta, refletir no que se vive.

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    1. Obrigada Augusto, pelo seu comentário, que delineia bem uma série de conflitos onde impaciência é indignação sem estratégias de avaliação e lucro.

      Abraço

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  2. Amigo Augusto,
    "Conviver com o ilícito, o imoral quando ele está no poder em uma organização é indignante e a pessoa pode escolher sair, abandonar o barco, buscar novas possibilidades profissionais e existenciais".
    Isso me remeteu ao estudo que comecei da Bhagava Gita com minha professora, principalmente às primeiras cenas, em que Arjuna depara-se diante de uma situação de injustiça e começa a vacilar em sua decisão de lutar contra ela, buscando trazer à baila justificativas, ainda que isso vá de encontro ao modo de viver que havia cultivado em toda sua vida.
    O que "salva" sua percepção de ficar congelada, "encerrada em si mesma", é sua confiança na sabedoria de Krisna, com que manterá um diálogo que será como uma janela abrindo-se num quarto fechado, permitindo a luz do sol entrar, permitindo um "respiro", permitindo uma maneira mais ampla de perceber a realidade. Assim, pouco a pouco ele vai conseguindo compreender por si mesmo qual a atitude adequada a ser tomada naquela circunstância.

    Mas te pergunto,
    e essa covardia, haveria causa(s) para ela? Será que ela poderia ser retraçada a uma causa comum?
    Venho querendo aprofundar meu exame nisso, e por isso te pergunto.

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  3. Diego, acho que o texto da Vera tem muito pra gente estudar e buscar essa resposta. Abraço.

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  4. Ah! Gostei muito deste artigo :-)
    Não sou uma pessoa que goste de disputas e nem mesmo de polêmicas, mas acho esta "onda" do politicamente correto muito irritante, uma verdadeira hipocrisia, censura disfarçada de civilismo, que além de manutenção, traz cumplicidade, como você bem descreve. Muito bom o exemplo chinês, que maneira interessante de perceber o novo!

    Abraço

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  5. Você tem razão Ana, obrigada pelo seu comentário.

    Abraço

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  6. É, Vera, vivemos mesmo numa ditadura das maiorias. Ficar sujeito à essas regras da "boa convivência", do politicamente correto, é alienante, desumaniza.
    Muito bom o texto.
    Bjs.

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  7. Grato Augusto,

    confio que esse texto, e muitos outros dela, dão boas pistas na direção de uma compreensão mais clara da(s) causa(s) da covardia, compreensão no sentido de insight capaz de ampliar nossa percepção, e não mero acúmulo de informações. Mas confesso que um dos meus problemas é que ainda não tenho capacidade para compreender seu linguajar e sua linguagem de modo pleno.

    Apesar disso, tenho confiança que meus estudos e questionamentos um dia me permitirão captar as essências destes textos interessantes que a Vera nos trás.
    Enfim, e esse também foi um dos motivos pelos quais dirigi a pergunta a ti, pois compreendo um pouco melhor a maneira como escreves.

    grato pela atenção e pelo espaço de manifestação de idéias.

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