Zumbis

Zumbis são os mortos-vivos, os fantasmas que povoam alguns deslocamentos específicos da não aceitação, da perversão.

Como entender perversões, crueldades extremas, enganos, mentiras que nos remetem a uma esfera de desumanidade desconcertante?

Mortos-vivos podem ser os amigos, os semelhantes, qualquer um que fabrique imagens, coberturas para esconder seu vazio, sua ganância, seus medos, suas não aceitações.

Não se aceitar, não aceitar que não se aceita, requer uma série de estratégias para conseguir realizar metas e desejos, desde simples posturas e hábitos civilizados até o engano, a mentira, o uso sistemático dos desejos, das metas e necessidades, enfim, das neuroses de seus interlocutores.

Na não aceitação dos próprios limites e dificuldades, a única coisa que interessa é conseguir cobrir as próprias fraquezas, consideradas feridas incuráveis. Sentindo-se monstros, mortos-vivos e vazios, vestem-se de humanos, conseguindo assim matéria-prima para sobreviver, para sentir alguma coisa. Esta é a dificuldade impossível de sanar - não sentem, são mortos-vivos. A busca, o engano, a manipulação (do outro) funcionam como sucedâneos de vida, até um ponto onde conseguindo o que precisam, passam a temer o desmascaramento. Este temor gera sintomas. Aplacar os sintomas passa a ser a nova regra, a nova busca, o paraíso necessário. Esgotado o consumo do outro - matéria-prima para a própria sobrevivência - eles passam a se consumir; é a autofagia, tornando-se necessárias mais imagem, mais aparência, consequentemente aumenta a quantidade do que esconder, do que camuflar. Em psicoterapia, a primeira mudança é deixá-los em carne viva, sem as roupas e imagens protetoras; tal estado é insuportável, a terapia é transformada em UTI (Unidade de Terapia Intensiva), enfim, ela é também vampirizada.

Denúncias, descobertas, desmoralizações são os únicos processos existentes para começar a "por a estaca no coração", acabar com estes vampiros, estes zumbis alimentados por suas contravenções, pelo roubo, pelo uso, pelas perversões até então escondidas e mantidas pelos inocentes e incautos que cruzam o seu caminho.

Dificilmente estes zumbis procuram psicoterapias, só o fazem quando buscam despistar e manter sua imagem acima de qualquer suspeita. O morto-vivo é um objeto, um fantasma que flutua e paradoxalmente pode estar escorado em alguma instituição: família, profissão e religião por exemplo.

Muito do que se tem chamado de perversão: pedofilia, necrofilia, zoofilia etc., pode ser melhor entendido sob este enfoque relacional.






"Reflexões sobre a vaidade dos homens", de Matias Aires
"Lolita", de Vladimir Nabokov
"A serpente e o arco-iris", de Wade Davis


verafelicidade@gmail.com

Comentários

  1. Oi Vera adorei o texto ele deixa muito claro o quão nocivo é a não aceitação, a desumanização até que ponto pode chegar, viver em função de metas, aparência e desejo tira totalmente a espontaneidade, algo do qual estamos nos esquecendo, "seca" a pessoa, não é? Rosélia.

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  2. Vera, você acha que indivíduos que matam muitas pessoas de uma vez, por exemplo, como vemos nos noticiários, são seres diferentes de todos nós e até dos assassinos passionais? Nós nos chocamos com assassinatos, mas até "entendemos" quando vemos a presença de envolvimento emocional, mas nestes casos de matanças em áreas públicas parece realmente não existir nenhum sentimento, apenas racionalidade e destreza; e apesar da "razão" ser apontada como um diferencial humano, paradoxalmente, costuma-se dizer que estes seres não são humanos, não sentem, "seriam como animais" (mas animais claramente sentem e expressam sentimento). Seria então uma questão de consciência dos atos praticados, por isto os loucos são poupados de punição maior? Seriam loucos ou seriam como os animais, comandados por instintos de sobrevivência? Confesso a você que não consigo ver diferença entre todos nós quanto a estas questões ao ponto de dizer que eles não são humanos; acho que todos pensam, todos sentem e "serial killers", pedófilos, grandes enganadores e aproveitadores só pensam em si, só sentem o que atinge diretamente a si (rejeição, vergonha, raiva, desejo etc) - apenas nisto são muito diferentes de nós que temos capacidade de empatia não só com o semelhante mas também com os animais. Li seu artigo mas não consigo entender por que estes zumbis não têm empatia. Todos nós temos não aceitações, por que estes indivíduos chegam a este ponto, qual é o "turning point", por que tornam-se zumbis?

    Abraço

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    Respostas
    1. Oi Ana, os seres humanos são todos iguais enquanto necessidades e possibilidades de relacionamento. O processo de não aceitação, de não aceitação da não aceitação, esvazia e desumaniza. O marido que bate na mulher, o pai que violenta o filho, a mãe que "vende" a filha para o bordeu, o "serial killer", o cara que vai ao cinema e mata inúmeras pessoas são exemplos deste processo que estruturalmente varia em função dos posicionamentos da não aceitação, que vai desde a fome que é morta pela venda do corpo até o excesso de dinheiro e prazer como algo que não significa. Instinto, razão são categorias eivadas de dualismos, visões elementaristas do humano. O zumbi nada sente devido ao esvaziamento.

      Abraço

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    2. Obrigada pela resposta, Vera, como sempre muito boa, uma luz: não somos todos iguais por não nos aceitarmos, muito menos nos nossos posicionamentos, somos iguais "enquanto necessidades e possibilidades de relacionamento" e ficou claro para mim também a variação nos "posicionamentos da não aceitação", o vazio etc.

      Abraço

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  3. Vera, aqui na cidade de Porto Alegre recentemente um homem matou a facadas a mulher de 38 e o próprio filho de 6, aparentemente por ciúmes doentios. Jogou-se de uma ponte em um rio meio-raso e foi resgatado por pescadores, sendo levado ao Hospital de Pronto Socorro. Deve estar preso agora. A desculpa para matar o filho foi evitar o sofrimento deste por falta da mãe. Quanta distorção! O que você diz sobre o desejo como estruturador da transgressão e da maldade faz todo sentido: não podendo ter o que deseja, do jeito que quer, o zumbi destrói o outro. Concordo que o ser humano é tudo igual: possibilidades de relacionamento. Os indivíduos são o que a vivência faz deles, se não tem a condição de transcender e se esgotam nisso. O ódio leva o sujeito a ficar obcecado por vingança e querer tirar a vida do outro. Como ninguém fica zumbi do dia pra noite, esse é um processo da vivência gradual do sujeito, que o leva a essencialmente não aceitar a si mesmo consequentemente não aceita perdas nem que um relacionamento 'não dê certo'. Abraço.

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  4. Oi Augusto, quanto tempo!
    O fato que você relata, o triste ocorrido aí em Porto Alegre, exemplifica bem o que você falou: "o ódio leva o sujeito a ficar obcecado por vingança e querer tirar a vida do outro". Não sei se Zumbi se aplica ao caso que você relata; nem sempre ódio, violência, agressão caracterizam o zumbi; a principal característica do zumbi é nada sentir, tudo é feito simplesmente porque quer fazer, o outro não existe enquanto tal; no caso daí de Porto Alegre, o ciúme parece ter sido um motivador. Recentemente, o caso americano, dos assassinatos no cinema, tem bem cara e cheiro de zumbi. Existem casos de neurose, que mesmo sem crimes, são tipicamente zumbis onde a insensibilidade predomina.

    Abraço

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  5. Não acha um tanto contraditório, Vera, dizer que o "zumbi" nada sente, ao mesmo tempo em que só atua por sentir em excesso? Quer dizer, seja pela rejeição, abandono, histórico de violência, essa "sensação" se faz tão insuportável e tão grave, que não encontra outra saída senão o esvaziamento, a projeção no outro.
    Não sentir por estar vazio, creio eu, é diferente de esvaziar-se para evitar sentir.
    Escrevi sobre o assunto recentemente no Blog. É um ponto de vista diferente, é o ponto de vista do meu grupo de pesquisa. Caso queira dar uma olhada:
    http://pensamentosmolinergicos.blogspot.com.br/2012/07/psicopatia-perversao-e-criminalidade.html

    Grupo: www.grupopersonna.com

    Abraços,

    Ana.

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  6. Oi Ana Molina, as interpretações sempre criam contradição, pois misturam pontos de vista, conceitos. Percepção é relação, percepção é conhecimento para mim. Para Freud, percepção é um mecanismo projetivo, expressa o inconsciente, ordens simbólicas etc. Considerando isto, para mim não existe percepção como projeção. O plano de referência de seu grupo é a subjetividade, interioridade, natureza humana, sociedade; o meu é a relação perceptiva como estruturante do humano, sem divisões elementaristas. Quando você fala em "projeção no outro", "sentir em excesso", você está falando do que eu não estou falando e ainda se você vê contradição no que escrevi é por interpretar.

    Quando digo que o zumbi não sente nada, estou dizendo que o outro nada significa para ele, salvo como alvo de seus interesses, neste momento ele sabe ter rompido a linha do humano, portanto, pode realizar suas vontades e desejos não importando o que destrua. A destruuição, a eliminação de limites, no contexto da não aceitação dos mesmos, é estruturante da maldade. Desenvolvo isto no meu livro "Desespero e Maldade - Estudos perceptivos relação Figura-Fundo".

    Abraço

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  7. Oi Vera, adorei o texto. A sensação de estar morto-vivo,vazio, mantendo atitudes para encobrir limites e dificuldades é realmente desesperador.
    Sei q artigos/textos n devem ser desmembrados, porém me tocou muito quando voce coloca q "... em psicoterapia, a primeira mudança é deixá-los em carne viva, sem as roupas e imagens protetoras; tal estado é insuportável...." e ainda "...Denúncias, descobertas, desmoralizações são os únicos processos existentes para começar a "por a estaca no coração", acabar com estes vampiros, estes zumbis ..."
    Valeu !!!Bjos Ana Cristina.

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  8. Oi Ana Cristina, você tem razão, essas atitudes são mesmo desesperadoras e estes indivíduos raramente buscam psicoterapia; talvez este seja um dos motivos de tanta violência dentro das famílias, nas escolas, no trabalho etc.

    Beijos

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  9. antes de eu me tornar psicólogo eu era fascinado por esse tipo de debate teórico ... agora to cansado de tanta teoria... acho isso meio vazio ... como se a psicologia abrigasse um monte de zumbis de varias igrejinhas que ficam tentando saber qual igrejinha é a mais perfeita, correta, etc... dai adotei uma outra compreensão ... menos racionalista, menos mentalista, mais relacionada à busca de sentido... e não sou existencialista ... só acho que essa compreensão deve ser deixada de lado em nome das verdades do self de cada um ... do momento de cada um ... se ela ta dizendo tudo isso sobre os zumbis, então respeito o momento e a opinião dela ... mas acho muito racionalista ... e pouco sensível ... meio sem senti-do... entendeu? simples assim... pra que complicar...??

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