Nada se esgota em si mesmo

É verdade, mas as coisas se esgotam em si mesmas enquanto vivência; esta inevitabilidade é transformada pelos contextos, pelos processos. A continuidade, o relacional é o processo, o movimento, a dinâmica do estar no mundo. O que é feito, o que é realizado é único enquanto vivência, mas estabelece diferenciações, significados, deixa marcas. São as implicações, as resultantes, as decorrências no sentido da continuidade processual. Não é causa, não é efeito, são momentos, passagens e paisagens diferenciadas e diferenciadoras.

No âmbito individual, tudo isto poderia ser relacionado ao processo de memória. Memória não é apenas um receptáculo de vivências, é também o start, o início de novas cogitações e considerações. A memória individualiza à medida que constrói, que estabelece o eu, o ego, referencial de individualização enquanto vivência - embora sem significação como possibilidade relacional devido a sua característica indicativa de registros e posicionamentos. Quando, à partir do registrado e posicionado, se busca significar possibilidades relacionais, apenas se estabelece padrões e critérios aquém ou além do vivenciado.  Memorizar é esgotar, mesmo quando se recorre a estes dados armazenados - é o passado - não atua ou se o faz já é presente. Kurt Lewin, em seu Princípio da Contemporaneidade, falava isto: não se pode explicar o presente pelo passado; em física, a força atua e consequentemente o movimento existe, não se pode explicar o que agora está se movendo pelo que antes atuava. Freud achava que as vivências passadas eram os determinantes do comportamento presente, assim, arbitrariamente segmentou o humano ao admitir o inconsciente como a chave mestra para entender motivação, memória e determinação. Ele comparou o inconsciente a um fantasma criador de situações inusitadas e inéditas; é o seu famoso Kobold im Kellar - fantasma da adega - o inconsciente.

As coisas se esgotam em si mesmas enquanto vivência, mas suas trajetórias criam desenhos, configurações responsáveis por continuidades ou desvios. Otimizar a vida em função dos próprios objetivos, por exemplo, traz vantagens, que na sequência são desvantagens para o otimizador; no mínimo, pelo oportunismo, estabelece posicionamento imobilizador.

A continuidade dos processos sempre leva à transformação, então, quando isto ocorre em posicionamentos imobilizadores, já não se consegue manter o que fez ficar bem. As realizações decorrentes do lucro, esgotam as possibilidades do mesmo - toda mudança de ordem social, econômica e política demonstra isto.

Indivíduos que sistematizam normas e regras, ao verificar a defasagem das mesmas e ainda assim mantê-las, são baluartes do "choque de geração" expresso no contato com os mais jovens e na dificuldade de aceitar o novo, o diferente. Para estes indivíduos as coisas se esgotam em si mesmas, não possibilitam implicações e nesta vivência estagnada, perceber suas coisas, em si mesmo esgotadas, é uma constante. Depressão, medo e revolta, passam a ser o alfabeto tradutor de seu cotidiano - velhice é isto.


















- "Le Démon de la Tautologie" de Clément Rosset
- "Sur le Rêve" de Sigmund Freud


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