Impossibilidade do possível

Perder a vez, não ter conseguido aproveitar o que foi possibilitado, gera constatação de incapacidade, entretanto, nem sempre isto é assim vivenciado. Frequentemente se atribui várias causas, explicações, que vão desde o azar até a interferência do outro pela inveja, etc, tanto quanto pode surgir culpa gerada por deslocamento de não aceitação, onde o indivíduo se sente incapaz, frustrado e prejudicado. Crítica, agressão, desespero, medo e ansiedade são resultantes deste processo de não aceitar perder a vez. O processo de não aceitação de si mesmo, cada vez mais, vai se estruturar em função do que foi perdido, não aproveitado, não recebido.

Perder o “grande amor” por medo de enfrentar situações ou, em certas situações, não perceber que a mudança de cidade era o caminho para o enriquecimento em um novo emprego, cria frustrações, verdadeiros quistos esvaziadores de perspectivas e disponibilidade, de vivências de impossibilidade. Impossível é tudo que não foi percebido, que não foi vivenciado ou que é percebido através de contextos, categorias e tipificações alheias, anteriores, que sobrepõem o percebido com significados aderentes à sua imanência, sua estrutura constitucional.

Nas vivências resultantes destes esvaziamentos, gostar de uma flor, por exemplo, é percebê-la no contexto das avaliações e contingências: vê-la como cara, exótica; uma sobreposição de questões extrínsecas à flor, dela circundantes, não intrínsecas à mesma.

Tudo que é percebido é possível, são os dados relacionais, entretanto, se for apropriado enquanto significado circunstancial, fica destituido de sua configuração (gestalt), de sua totalidade e passa a receber aposições que o desconfiguram; é o possível costurado, coberto, manuseável, mas cada vez mais impossível de ser percebido enquanto ele próprio.

Possíveis transformam-se em impossíveis, e vice-versa, pela maneira como lidamos com eles. Esconder, estigmatizar, utilizar o possível gera sua impossibilidade e de tanto querer não perder a vez, o ser humano vira objeto de manobra, objeto de si mesmo, se divide, se perde e quebra a unidade de estar no mundo aberto a infinitas possibilidades, enfim, esgota-se em necessidades sobreviventes, perdendo a vez.





- “As Núpcias de Cadmo e Harmonia” de Roberto Calasso


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