Mecanização, vazio e desespero



"Sangro, logo sou" *


Lendo Byung-Chul Han encontrei o seguinte: "Como quer que o chamemos, Ritzen, cutting ou o ato de se cortar é algo que se tornou hoje um fenômeno de massa entre os adolescentes. Milhões de adolescentes na Alemanha mutilam-se a si mesmos. De modo proposital se flagelam, causando feridas para sentir um alívio profundo. O método mais comum é se cortar com uma gilete. O ato de se cortar se desenvolve até se tornar um autêntico vício. Tal como ocorre com qualquer outro vício, o intervalo entre os atos de se cortar se torna cada vez menor, assim como as doses cada vez maiores. Assim, os cortes ficam cada vez mais profundos, sente-se "uma urgência de se cortar"." *

A descrição acima nos impõe uma série de constatações. A alienação, a coisificação estruturada pelos sistemas sociais e econômicos é de tal ordem que o indivíduo só sobrevive ao se transformar em máquina. As proposições familiares, que poderiam ser antíteses aos processos coisificadores, são lubrificantes, mantenedoras dos mesmos, e assim uma série de máquinas são geradas. Os indivíduos trabalham, consomem, se exercitam, participam de competições, são bem treinados para o bem, para o mal, exercem desejos, evitam frustrações, mas o resultado final é que não sentem - são máquinas. Não sentir é estar isolado, é viver em monólogo gerando o impossível, pois aumenta a sensação de morto-vivo, de zumbi que precisa sentir. Assim a dor é o passaporte para se sentir vivo, é preciso doer, sangrar para se situar, para alguma coisa sofrer além de seus mecanismos reflexos.

A dor é, então, o passaporte para a alegria. Essa inversão tantaliza. Como Tântalo, nada pode ser usufruído, tem que estar sempre em um limiar. É o limbo promissor que acena para surpresas. É o escorregar na possibilidade limitada que faz caminhar. É a inversão de possibilidades em impossibilidades.

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* in "Capitalismo e Impulso de Morte", Byung-Chul Han, Editora Vozes, 2021

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