Torcendo que aconteça


 

Apostar no futuro é gerar expectativa. Esperar é temer quando se imagina que nada do necessário e prometido vai acontecer, tanto quanto esperar é comemorar o que já está para acontecer, o que se deseja que ocorra. Valorar como positivo ou negativo o que vai acontecer cria ansiedade à medida que antecipa acontecimentos. As antecipações funcionam como apostas. É o indivíduo com ele mesmo decidindo. Esse autorreferenciamento implica sempre em divisão. O indivíduo se transformou em outro que é o juiz, a vítima, o que vai decidir o processo. São criados os atores, outros eus resultantes da divisão suportada por contextos e atmosferas de ansiedade.

 

As vivências voltadas para resultados sempre são apoiadas em ansiedade e é por essa condição desvinculada da realidade que elas angustiam e atritam, é a poeira que cega. Não há discernimento, não se sabe o que está acontecendo, nem mesmo como acontece.

 

Aspectos culturais incorporam vivências. Existem ciclos e datas viáveis e prováveis. A expectativa da formatura, do início do trabalho, da época do casamento são marcos, que mesmo envoltos em expectativas se configuram como sinalizadores, neutralizando e alicerçando expectativas individuais, como por exemplo as relativas à morte: não há expectativa de morte, há o temor de morrer, salvo quando é pregnante o processo de doença, de deterioração da saúde; o desejo de casar e constituir família, que geralmente é fonte de ansiedade para as mulheres, pois as mesmas, via de regra, são escolhidas, não escolhem; e a dependência econômico-social, que também aumenta a expectativa. A falta de autonomia propicia sempre ansiedade, pois tudo que acontece depende dos outros: família e convenções sociais.

 

Quanto menos autonomia, mais despersonalização, mais vazio enquanto vivência do presente, o que acarreta deslocamentos para um tempo no futuro. É a torcida para que tudo dê certo, para que se consiga o melhor. Essa atmosfera é também propícia à afirmação do sobrenatural como definidor de processos. Sempre que há expectativas surgem os porta-vozes do futuro: o padre, a mãe de santo, o vidente, o astrólogo, enfim, pessoas que podem trazer as coisas do céu - o futuro, o que vai acontecer - para a terra, para o presente. Social e politicamente, a espera de dias melhores vai, assim, depender das crenças, das ilusões, dos salvadores da terra, do povo, dos que podem ser santos milagreiros criados pela demagogia, pelo populismo, pela fome e opressão, e todas essas circunstâncias são vivenciadas como praga e castigo celestial por resultado das más escolhas anteriormente feitas.

 

Vivência do presente, questionamento é o que permite lucidez para lidar com o que acontece, independente do que se deseja ou teme acontecer. Isso vale para a vida privada, para o indivíduo ou para a coletividade, o social.

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