Agendando o imaginário

 

 

 

Toda vez que ouço ou leio: “Deus vai me ajudar, Deus me ajuda” percebo o desespero, a desorganização, a infelicidade implícita de quem tem esse desejo, essa certeza.

 

Para mim, fé é transcendência, é o encontro resultante de ir além de si mesmo, e nesse sentido, fé é exercício de autonomia, é descobrir no outro, o si mesmo.

 

Deus ajuda, pode ajudar o indivíduo que cumpre as suas obrigações. Essa sempre foi a afirmação clara de toda religião, entretanto, com o passar do tempo, essa clareza foi obscurecida e as obrigações se transformaram em sinônimo de promessa, óbolo, dízimos, festas e batuques. Pagar a promessa, fazer o agradecimento passou a significar ou resumir a maioria das ações religiosas. É absurdo! Pede-se ajuda a Deus e depois se tenta barganhar com a ajuda dada. Entronizam-se deuses nesse ato de troca. Deus ajudou e será recompensado. É vil, é absurdo, é uma troca, um ato negador de Deus.

 

Fé é autonomia que quando pensada e exercida como esperança funciona como espalhadora de frustração, mágoa e desejo. Tudo que atrapalha e contraria, que está prestes a possibilitar mudança pela evidência de desespero e dor, é espalhado, não cria empenhos.

 

Em lugar de se acreditar em Deus se inicia apostas em sua ação salvadora. É assim que Deus começa a compor e organizar os quadros autorreferenciados. A instrumentalização da fé resulta da coisificação de um suposto poder transcendente, que passa a ser o acompanhante diário daquele que precisa almeja, acredita. Amesquinhar Deus é destruir o transcendente, é reduzir tudo às próprias necessidades. É também a atuação do cheio de si que acredita que essa é a única maneira de superar dificuldades, medos e doenças, por exemplo.

 

Vivenciar as possibilidades no impossível, agendando o imaginário, é destruidor de humanidade.

 

 

Comentários

  1. Fe é transcendência, ou se tem ou não. Penso em kierkegaard.

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    1. Quando a fé é instrumentalizada, ou quando é um deslocamento, não há transcendência. A vida em função de satisfação e superação de necessidades impede transcendência.

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