Confiança

Confiar nos outros decorre de ser disponível, de aceitar o que se é, o que se tem, o que se vive. Quando se avalia lucros e perdas não há disponibilidade, não há confiança, o que existe são acertos, negociações e contratos.

Discussões sobre a modernidade costumam enfatizar o aumento do individualismo e competitividade onde as relações são reguladas e controladas por contratos escritos em contraposição a uma época onde acertos eram baseados na palavra ou na confiança entre as partes. Estas afirmações podem levar a crer que a falta de confiança é resultado deste momento histórico. Em verdade, assistimos apenas uma mudança nos mecanismos coercitivos que regulam a confiabilidade ou os acertos entre as pessoas: antigamente a família e a comunidade exerciam esta controle; hoje em dia, instituições públicas regulam  os acertos.

O homem é sempre o mesmo; confiar ou não confiar, ser uma pessoa de confiança depende de como ele se estrutura.

Logo ao nascer, o rosto materno é uma boa ou má configuração, acolhedora ou limitadora. O pai, a mãe, o avô, a avó, os irmãos são também confortantes ou desconfortantes; o mesmo quanto ao ambiente onde se vive. Estruturar confiança - perceber o que se percebe - é o mais fácil, é o dado relacional direto caso não haja superposições escamoteadoras das motivações: por exemplo, dar à criança um bombom de chocolate porque se deseja que ela não conte o que viu, pode ser o início da estruturação de um ser não confiável, assim como um ser desconfiado; pode estruturar omissão ou oportunismo onde se abdica dos próprios critérios e evidências percebidas, em função de aplacar desejos impostos pelo outro, seja através de ameaças (medos), seja através de seduções (metas).

Crianças, filhos, alunos são muito sensíveis a ser manipulados e enganados ou a ser aceitos em seus limites, inseguranças e dramas. Quando manipulados e enganados são transformados em objetos, seja de desejo e perversões, seja de regras adaptadoras, coisificantes. Aceitos em seus limites e dificuldades, confiam, percebem o outro que não os utiliza e assim começam a estruturar disponibilidade, confiança, amor, aceitação.

















"Charneca em flor", de Florbela Espanca
"Coração tão branco", de Javier Marias

verafelicidade@gmail.com

Comentários

  1. Oi Vera este texto é muito esclarecedor, o exemplo da criança que recebe o chocolate para não contar o que viu é muito forte e infelizmente um ato comum, porém de uma implicação psicológica marcante, adorei beijos Rosélia.

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  2. Oi, Vera!

    Você diz: " Confiar nos outros decorre de ser disponível, de aceitar o que se é, o que se tem, o que se vive. Quando se avalia lucros e perdas não há disponibilidade, não há confiança, o que existe são acertos, negociações e contratos.".

    Confiar em si mesmo também!
    Obrigada, Vera!
    Beijos,
    Milena xxx

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  3. Rosélia e Milena, boa noite, vocês apreenderam as implicações da questão. Obrigada pelos comentários.

    Beijos

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  4. Olá Vera!

    Adorei o tema e seu texto!!!
    Ahhh como é bom sentir confiança! Dá uma sensação de tranqüilidade, de leveza! E confiar em si mesmo, como Milena destacou, me faz pensar que é, simplesmente, pré-requisito para confiarmos no outro. É aquela questão: como amar alguém de verdade se não sabemos ter amor próprio? Confiarmos em nós mesmos nos permite ir além, ganhamos espaço, perrmitimos auto crescimento.
    Porém, como você mesmo disse: "O homem é sempre o mesmo, confiar ou não confiar; ser uma pessoa de confiança depende de como ele se estrutura."
    Acredito que o ser humano é genuinamente confiante e confiável. A criança, por exemplo, nos seus primeiros anos de vida é absolutamente pura, desprovida do "ter", é somente "ser". Está aberta, ou seja, confiante!
    Porém, com o passar do tempo, essa criança vai absorvendo das outras pessoas os medos, as inseguranças, a malandragem para conseguir o que quer... Consequência: vai se tornando esse homem que temos hoje, muito pouco confiante e raramente confiável.
    Grande abraço,
    Suzane

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    Respostas
    1. Bem colocado, Suzane, entretanto não podemos reeditar Rousseau: "o homem é bom, a sociedade é que o corrompe". Os processos de estruturação da aceitação ou não aceitação, pelo outro, são os definidores dos panoramas confiáveis ou não. A criança percebe que o chão que ela pisa é firme, é oscilante, escorregadio e engolidor; metaforicamente estou tentando falar de como a relação com o outro contextualiza todo o horizonte perceptivo, criando assim, medo, cautela, confiança. O outro antes de ser o transmissor dos valores sociais, é o que aceita ou não aceita.

      Abraço

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  5. Olá Vera, achei excelente o texto. -Arliss

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