Pressentimentos e interpretações


O insinuado é percebido enquanto prolongamento do que ocorre. Esta é uma das leis perceptivas postuladas pelos gestaltistas clássicos - é a Lei da Closura ou do Fechamento.

O percebido é estruturado relacionalmente (é resultante da relação sujeito-objeto). Havendo preexistências que invadem o dado, o presente, o que ocorre fica nublado, fragmentado por desejos, medos e lembranças. Estes posicionamentos determinam as interpretações, as constatações e catalogam as vivências.

No dia a dia da clínica psicológica, trabalhar com referenciais, com conceitos posicionantes - inconsciente por exemplo - gera interpretações, reflexões e conclusões redutoras das vivências, explicações estas baseadas principalmente na visualização dos desejos e dos medos.

Frequentemente, o cotidiano das pessoas é invadido e estabelecido à partir de clichês  (que são closuras estabelecidas em outro contexto e reutilizadas) e à partir dos pressentimentos gerados pela transformação de índices em totalidades indicativas. Por exemplo, os próprios desejos ou medos são indicativos do que se deseja ou teme acontecer. Ao privilegiar as partes, se perde a globalidade, repete-se pensando estar descobrindo, antecipando.

Esta incapacidade de constatar o que ocorre, esta substituição do que se dá (do presente) pelo que se deu ou pelo que se antecipou por desejo e temor, instala ansiedade, intranquilidade, tanto quanto certeza, resultante de dogmas. A certeza é o alicerce das interpretações, das "descobertas"; verdadeiros achados redutores das dinâmicas conflitivas e paradoxais. Isto gera muito preconceito e distorção. E assim, a certeza do que ocorreu confirma os pressentimentos. Considerar-se privilegiado, capaz de intervir e pressentir, cria os que estão descobrindo, antecipando e determinando as ordens reguladoras e aniquiladoras dos relacionamentos.

A invasão do presente, pelas superposições geradoras de esfacelamentos, de fragmentações é sempre alienante, gera profetas, sensitivos e experts, assim como cientistas comprometidos com regras e ordens a manter ou destruir.









 








"A Guerra dos Sonhos", Marc Augé
"A fala Sagrada - Mitos e Cantos Sagrados dos Índios Guaranis", Pierre Clastres


verafelicidade@gmail.com

Comentários

  1. Olá Vera, mais uma vez seu artigo me faz entender, ou melhor, pensar, situações complicadas. Pressentimentos parecem acalmar a gente quando se realizam; é como se nos preparasse para o que vem de ruim (e às vezes para o que vem de bom também); este sentimento vago do que vai acontecer diminui o choque da surpresa e de quebra traz a ilusão de fazer parte de algo maior que a própria vida, enfim, estas idéias acalentam, tranquilizam, mas, como você diz, impedem a clareza sobre o que está acontecendo e no meu caso, impediram decisões que se tivessem sido tomadas a tempo, eu não estaria passando pelo que passo hoje. Lendo você, ficaram bem claras as "closuras" que fiz, os indícios já existentes, as interpretações e as ilusões subsequentes… e ficou claro também como a pseudo calma gerada pelo pressentimento é "redutora das dinâmicas conflitivas e paradoxais". Preciso vivê-las agora.

    Um abraço e obrigada, Ana.

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  2. Oi Ana, quanto tempo! Esclarecedor seu comentário. Espero que você ultrapasse as circunstâncias limitadoras, pressentidas e ocorridas.

    Abraço

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    1. Obrigada pela resposta, Vera. Sinto falta destes nossos diálogos, mas, c'est la vie...

      Grande abraço, Ana.

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