Édipo - ações e consequências

Graças ao viés psicanalítico, a história, o mito de Édipo sempre foi exemplificador do desejo incestuoso, do inesperado, da fatalidade determinada pelo destino, determinada pelo inconsciente.

Ao resolver, consciente e criativamente, o grande enígma proposto pela Esfinge, Édipo cai na armadilha do desvendado: caminha para a realização inconsciente de desejos não pressentidos, como diria Freud. O prêmio pela decifração do enígma é casar-se com a rainha Jocasta. O prêmio emoldura a afinidade entre os protagonistas sem destacá-la, mas esta questão não se coloca, é o absurdo conseguido e não são percebidas suas implicações; mais tarde quando isto ocorre, quando Édipo descobre estar casado com sua mãe, ele fura os próprios olhos, se castiga por ter sido cego, não ter visto que Jocasta era sua mãe e assim, consequentemente, assume as decorrências de sua cegueira. Jocasta se suicida.

Estes atos trágicos são exemplos de ações consequentes, que em nosso cotidiano são desleixadas, desconsideradas. A divulgação do mito de Édipo para mostrar o incesto, deixou implícita a lição que o mito ilustra: a inevitável consequência de nossos atos, as implicações relacionais dos desejos e comportamentos, assim como a demonstração de como o indivíduo responsável e consequente não convive com enganos, acasos e necessidades arbitrárias, não convive com impunidade. Tudo pode ser feito e descoberto; o importante é que haja assumpção, participação, crítica e autocrítica das atitudes. Ao perder de vista este desenrolar consequente da existência, surgem escamoteações, justificativas, tolerâncias e ambiguidades que ao quebrar a nitidez dos processos cria a impunidade.

O Édipo moderno, o homem desumanizado e contingente, não é consequente, não quer pagar o preço de nada, muito menos dos erros ou males que causa aos outros: das relações familiares às sociais, dos “laranjas” aos incongruentes inquéritos fabricados e autenticados por diversos detentores da lei e da ordem, se constrói o caminho da impunidade.

Consequências, paradoxos e afinidades são a trajetória que diferencia o necessário do possível. As contingências são as aderências que nada definem, apenas significam enquanto redes relacionais. O intrínseco, a possibilidade de ser, não se esgota. Não saber que o grande prêmio recebido - a rainha Jocasta - era sua mãe, transforma Édipo em cego e alienado e por justiça, exatidão e coerência, ele fura os próprios olhos, cegando-se como maneira de recuperar a visão, recuperar a coerência, a aceitação e respeito próprio.

Não fugir das consequências dos próprios atos, não buscar impunidade para os mesmos, nos transforma, nos faz humanos. Pagar o preço, ser responsável é ser consequente com o praticado, é o que civiliza e mantém a roda rodando, é processo civilizatório - o mito de Édipo nos fala sobre isto mais que qualquer outra coisa.


“Medo, reverência, terror - Quatro ensaios de iconografia política” de Carlo Ginzburg

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1 - Medieval painting of Oedipus blinded
2 - Oedipus, tearing out his own eyes, John Lydgate's Fall of Princess, England c.1450 - c.1460


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