Crianças desobedientes

Conviver com o filho desobediente que congestiona o dia a dia é uma situação difícil, desagradável. É um obstáculo, gera frustração, decepciona, é um problema. Sempre que se precisa resolver situações problemáticas, se estabelece níveis de soluções satisfatórias, se lista o que é necessário mudar, o que é necessário resolver e poucas vezes surgem questionamentos acerca de por que esta criança, por exemplo, por que o filho, está assim. Esta segunda pergunta muda o contexto de percepção dos distúrbios causados pela criança, mostra que muito do que atropela e desagrada é causado por outras questões. Neste momento abrem-se maiores perspectivas de mudança, pois a criança é vítima, além de agente das dificuldades. Existe nela condições de se comportar diferente, desde que muitas frustrações e rejeições sofridas devem ser consideradas, devem ser resolvidas. O psicoterapeuta é importante para mostrar estes novos aspectos, para fazer entender, por exemplo, que a criança está sendo “bode expiatório” de todo um desencontro doméstico, escolar, social.

Quanto mais demorem as intervenções possibilitadoras de mudanças perceptivas, quanto mais for mantida a visão da criança como criadora e responsável por seus desatinos e dificuldades, mais ela é transformada em objeto, em não-criança, em não-ser, até tornar-se o que deve ser destruído, o que se deve passar adiante, tirar de casa, o que não requer nem cuidados, nem atenção. As dimensões trágicas são estabelecidas. As mães se transformam em Medéias criando infinitos malefícios, quase mortes psicológicas: desde a falta de amor e de carinho, até o esquecimento de administrar recursos necessários à sobrevivência da criança, pois fazer sobreviver a criança é também fazer sobreviver, é manter o problema que infelicita. E quando quem tem o papel de mãe é a madrasta, ou quem escolheu adotar? Máscaras, fantasias, obrigações, existem. Cada coisa tem que significar em seu respectivo contexto, em seus estruturantes. A verdade é que o arrependimento de ter aquela criança impede afeto pela mesma. Não há como propor ou cobrar atitude ética, responsável ou consequente, de quem está quase pontualizado pelo desespero de não fazer frente às frustrações, de quem desiste, exige, cobra.

Transformada em objeto e, ainda, em objeto de ódio e frustração, a criança precisa ser resgatada. Não se conta com pais ou amigos para isto. Não havendo continuidade de atendimento - desde a escola, os professores, o psicólogo - a criança pode ter que se defrontar com os limites de sua solidão, de não ser mais amada, considerada, exceto se ela se comportar bem, engolindo o amargo de seu desespero e carência.

Qualquer deslocamento da não aceitação gera situação pantanosa, podendo instalar um caos, o desespero na vida de seus participantes ao criar bodes expiatórios, os que vão ser sacrificados em função do bem-estar familiar. Geralmente, as crianças são vítimas deste não atendimento de regras e desejos, por isso sempre são obrigadas a obedecer, a se submeter, a agradecer o teto, a escola e a comida recebidas.


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