Anestesia



A vivência da terapia geralmente é feita no contexto - Fundo - de tratamento, de remédio (contexto médico) ou de mágica (adivinhação, descoberta do destino etc.). Não há crítica, não há questionamento, existe apenas desejo de melhorar, de tirar sintomas ou conseguir realizações e metas. Nesse contexto, um dos primeiros atos no processo psicoterápico é transformar o terapeuta numa ferramenta útil ou inútil, precariamente ou oportunamente usada.

Todo anestésico, se adequadamente usado, é bom enquanto medicação necessária. É um primeiro passo para cirurgia, para intervenção transformadora. No processo terapêutico, a confiança no processo, no outro terapeuta e em si mesmo, enquanto não aceitação da não aceitação, funciona como anestésico, mediação necessária para as cirurgias da alma, do psiquismo, os cortes e transformações dos nós e núcleos relacionais. Mas a terapia jamais deve ser usada como anestésico. Quando tal ocorre, ela é utilizada, capitalizada como justificativa e explicação, negando assim sua função básica: transformar, mudar o estado de angústia, apegos e medo, em estado de presença, disponibilidade e participação.

Às vezes, ter problemas é vivenciado como horrores que precisam ser escondidos, negados, não falados e a psicoterapia é vista como saída ou alívio, jamais anestésico, pois se tal acontecer, ela é descaracterizada de sua função precípua: despertar, clarificar.

A psicoterapia, o psicoterapeuta, percebidos como ombro amigo, como apoio, são também devorados pela não aceitação de problemas. O se deixar devorar é uma forma de se tornar cúmplice e garantir sua utilidade, mas é a última coisa a esperar de um terapeuta. Antes de qualquer coisa, o terapeuta é o outro, a antítese, o diferente que contradiz, tanto quanto afirma possibilidades e necessidades à medida que as configura sob novas luzes, novos contextos, novas demandas. É um encontro não compromissado que permite estabelecer a verdadeira dimensão do que estrutura e desestrutura autonomia, aceitação, aceitação da não aceitação, tanto quanto construção de máscaras, de imagens fabricadas por meio das ressignificações, bricolagens e deslocamentos da impotência, do medo e incapacidades.

Mudar, aceitar que não se aceita é um passo indispensável e vigoroso no caminho da autonomia e vislumbre das dimensões configuradoras do próprio ser, das condições de relacionamento. É o exercício, sem tortuosidade, sem posicionamento, das possibilidades relacionais de ser no mundo com os outros e consigo mesmo. É realização motivacional, é integração polarizante de convergências e divergências, é a desalienação, o deixar de ser objeto, coisa posicionada, situada e representada por funções exercidas. É a realização de suas possibilidades de relacionamento, de sua humanidade.




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