Imperativo categórico, grande insight kantiano

 

 

As pessoas podem ser bestiais, desumanas e cruéis quando agem em função de seus interesses e conveniências, enfim, quando não agem livremente, quando estão submetidas a injunções pragmáticas, políticas, a conveniências e circunstâncias.

 

Como agir livremente quando se está imerso e submerso em sociedades, empresas, famílias, clãs? Kant dizia que só agimos livremente quando agimos de acordo com o imperativo categórico e não de acordo com imperativos hipotéticos, pois os imperativos hipotéticos estão ligados a compromissos, ou a atingir resultados vantajosos, a fugir de situações estressantes, ou a preparar para algum objetivo conveniente posteriormente. O imperativo hipotético faz com que nossa vontade não seja determinada por nós e sim por forças externas, por nossas necessidades circunstanciais, por desejos. Só através da autonomia, ele dizia, podemos escapar dos ditames da natureza e das circunstâncias, e agirmos com liberdade, segundo leis universais e determinação que nos impomos a nós mesmos. Para Kant, a lei não pode ser condicionada por nossas vontades e nossos desejos particulares, não se atrela a finalidades individuais, está condicionada ao dever, ao coletivo, a princípios universais que se esgotam em si mesmos e se baseiam no que ele chamou de imperativos categóricos.

 

Não pode haver autonomia sem disponibilidade, ela é necessária para perceber e optar pelo caminho da solidariedade, da compaixão, da participação, da luta, dizemos nós. Em Kant, as rígidas noções sobre liberdade e moralidade estão interligadas. Agir livremente, ou seja, de forma autônoma, e agir moralmente, de acordo com o imperativo categórico, são, em última análise, a mesma coisa. Sua concepção de moralidade e liberdade leva Kant à uma crítica contundente do utilitarismo. Para ele, buscar a moralidade em algum interesse ou desejo particular, tal como finalidade ou utilidade, está destinado ao fracasso. Ele afirma que qualquer princípio baseado em interesse não passa de um princípio condicionado a algo externo, e não pode, portanto, ser considerado uma lei moral, é sempre um imperativo hipotético condicionado a inúmeras situações outras.

 

Kant é um filósofo metafísico, entretanto ninguém avaliou, considerou e se deteve no comportamento humano enquanto razão, exercício de regras e deveres, medo e paixão, como ele: basta ler A Crítica da Razão Pura (1781) e A Crítica da Razão Prática (1788). Está implícito em Kant a visão do homem como mero animal sobrevivente que tem de se apoiar nas manadas, em seus grupos iguais, para sobreviver. Nele também lemos as críticas ácidas ao comportamento que se baseia em fazer de conta que se é humano, que se é solidário, altruísta e compassivo. Hobbes (1588-1679) dizia que “o homem é o lobo do homem”, Kant se opôs a isso e ainda apontou alguma saída, alguma esperança, caso o homem se humanize pelo que ele chamava de imperativo categórico, que é a atitude moral, idônea, autônoma criada pela liberdade que permite não se utilizar de vantagens, e que possa agir por princípios maiores, em última análise: compaixão, liberdade, honestidade. Mesmo a busca da felicidade ou da satisfação de conveniências são chamados por ele de imperativos hipotéticos. O imperativo categórico é a exigência absoluta que deve ser obedecida em todas as circunstâncias e se justificar como um fim em si mesma. É parecido com o equivalente cristão dos 10 mandamentos, só que é estruturado com mais requintes e implicações psicológicas, pois Kant enfatiza o próprio ser humano e sua autonomia, e não finalidades como a obediência a Deus, proposta pela religião. Não mentir, não se aproveitar do fraco, não utilizar o outro para suas próprias conveniências, pois essas ações se baseiam em objetivos individuais.

 

Quando o homem abre mão da moralidade, da solidariedade, ele inicia sua própria destruição. É a animalização do que está sendo guiado pelos resultados, pelas buscas e desmesurados desejos de poder, tanto na esfera individual quanto na social. Hobbes predomina, é a visão utilitária que transforma o homem em sobrevivente, animal sem discernimento. Assistimos isso nas guerras ao longo da História e também nos conflitos entre indivíduos e pequenos grupos.

 

Aqui no Brasil, recentemente vimos uma acusação contra o Padre Júlio Lancellotti, um religioso que ajuda e alimenta moradores de rua. Acusado de ser comunista, por causa de suas declarações a favor dos desprovidos, perseguido há anos, agora foi levantado que possa talvez estar desviando dinheiro, e foi criada, pela Câmara de Vereadores de São Paulo, uma CPI encarregada de investigar sua atuação. Quando surgiu um clamor popular contra esse inquérito, vários parlamentares assinantes da CPI desistiram, retiraram suas assinaturas. Para eles, as vantagens de seguir determinações políticas partidárias desapareceram diante da má imagem pública que causaram. Esses políticos, que assinaram apoiados em vantagens e conveniências, imperativos hipotéticos como diria Kant, recuaram diante do brilho impoluto da liberdade caridosa do Padre Lancellotti e do imenso e eloquente apoio popular ao Padre e repúdio a sua injusta perseguição.

 

Existem pontos inegociáveis, que nos sustentam como homens e que quando não são considerados e seguidos nos transformam em abjetos e poderosos senhores de Estado, família e grupos. Mesmo nos colapsos civilizatórios, sociais e econômicos, mesmo na guerra, o imperativo categórico se impõe e quando ele desaparece o que se vê é genocídio, crueldade, maldade. As regras morais são vitais, pois questionam e sustentam o ser humano, o estar no mundo com os outros. É explícita, clara a necessidade de autonomia: a transformação do ser humano, deixando de ser objeto e passando a ser agente determinante de sua vida. Longo percurso que requer constatação, renúncia, denúncia e questionamentos. E ainda, por mais que pareça absurdo afirmar, é a exigência do imperativo categórico no tratamento de questões como guerras entre Estados, disputas políticas, interesses de pequenos grupos, que abre horizontes e possibilidades de manter a humanidade.

 

 

Comentários

  1. A clareza do seu artigo me toca, bom ter um respiro e apreender de forma ampla as questões desumanas e humanas.

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