Diferenças entre abandono e perda de apoios
Ninguém vive isolado, estamos sempre convivendo e esse convívio subentende encontros, combinações, alianças, e até pactos ou acertos que se fundamentam em confiança e apoiam o dia a dia mesmo que não sejam explicitados ou discutidos. Aliás, na maioria das vezes, eles são tomados ou assumidos como certos, como garantidos.
Sentir-se abandonado é a vivência que resulta da quebra do que foi acertado. Não é simplesmente o compromisso que é quebrado, é a crença no outro que é destruída. Acreditar no outro, estar junto sem dúvidas nem medos, estrutura bem-estar, é o encontro. Então, sentir-se abandonado é vivenciar um terremoto, tudo treme, nada mais é estável ou garantido, tudo mudou subitamente. Essa surpresa, essa descoberta é aniquiladora, é como se o chão se abrisse, só existe abismo, não há onde caminhar. A vivência é de que tudo acabou, tudo mudou, nada resta.
Essas vivências são frequentes nos relacionamentos afetivos e vêm sempre acompanhadas da descoberta, da evidência de ter sido traído, substituído por outras pessoas. O se sentir traído é a vivência decorrente do não mais significar. Filhos em relação aos próprios pais, irmãos, amigos, também podem vivenciar isso.
Muitas vezes a ideia de compromisso quebrado, acerto mudado que gera a sensação de abandono é decorrente de ilusões. Por carência, autorreferenciamento ou desespero, o indivíduo se agarra ao outro, funcionando como uma trepadeira que se apoia em outros troncos para sobreviver. O que se agarra sabe que é indispensável esse apoio, essa segurança, mas geralmente o que serve de base, de apoio não compartilha desse sentimento. Ser apoio, apoiar é diferente de estar apoiando, segurando. As diferenças de atitude são, elas próprias, responsáveis pelos distanciamentos. Quanto mais apoiado, quanto mais se é usado como apoio menos significa enquanto individualidade, daí ser possível substituir apoios. Perder o apoio não equivale a ser abandonado, embora possa assim ser vivenciado nos indivíduos autorreferenciados. Não se enxerga o próprio chão que sustenta, que se pisa e caminha enquanto sustentáculo e caminhada. Sem a base, sem o apoio é que se percebe o que era útil e seguro, se percebe, então, como faz falta o que sustentava.
Na vivência de abandono é diferente. Não se perde apoio seguro, se perde o outro, o que está diante. A face mudou, virou estranho. O que era familiar, amigo, é estranho e hostil. Ser abandonado, estar sozinho, decorre também da descoberta do engano, tanto quanto do inóspito, do vazio que o circunda. Sentir-se abandonado pela própria mãe, pelo próprio pai, pelos amigos é terrível e esclarecedor. Se descobre engano, medo, tristeza, mas também solidão. Essa nova companhia, a solidão, quando reconhecida e aceita é promissora: permite mudar, permite sair da bolha e casulo. Ela faz a metamorfose, a transformação que garante voos, novos horizontes, novas configurações, caso sejam superados os estruturantes de tristeza, violência e depressão causados pelo abandono, pela estranheza amedrontadora das trapaças do familiar.
Novas situações, novos significados surgem, o mundo muda, o indivíduo se reequilibra ou se desespera. No desespero ele mata, destrói quem o abandona, é a violência que surge da configuração desestruturante do amor negado. É o isolamento criado pelo autorreferenciamento que o torna violento, raivoso, desesperado, capaz de lançar mão de extremos para recuperar a perda, ou, na impossibilidade da reconquista, aniquilar quem se afasta, quem abandona. Tem sido cada vez mais frequentes os casos de crianças ou adolescentes que se tornam criminosos, que matam, agindo nesse contexto de se sentirem abandonados. Reações menos violentas por parte de adultos e jovens também formam o dia a dia das famílias, escolas e escritórios. Por menores que sejam as agressões, as artimanhas maldosas que respondem a abandonos, elas sempre expressam a não aceitação das transformações inerentes à dinâmica da vida.
Aceitar-se, aceitar a vida, aceitar a realidade não é algo que acontece por uma decisão: “a partir de agora me aceito”. Aceitar-se depende do encontro, de ser aceito pelo outro.
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