Inveja


O deslocamento dos desejos não realizados, a não aceitação da não aceitação, estrutura a inveja. Invejar é desejar ser o outro a fim de ter, de vivenciar o que ele vivencia, ser o que ele é. Oprimido, compactado, enquistado pela não realização de desejos, explode. Chamamos esta explosão de inveja. Criou-se um novo ser. O ser humano enrodilhado pelo autorreferenciamento, enquistado pela vivência sobrevivente, precisa, apesar de seu isolamento, se relacionar, mas isto não é instantâneo, não é espontâneo, tem que ser construído consoante os referenciais de não aceitação; então ele explode, surge o duplo, um aliado construído para sobreviver. É o invejoso que espera, através da instrumentalização de tudo que está à sua volta, carrear recursos para viver bem, viver satisfatoriamente. Fazendo psicoterapia querem mais instrumentos, mais ferramentas para consertar o errado, as falhas da máquina sobrevivente.

Para construir e cuidar deste novo posicionamento, muito esforço é necessário. Disfarçar, aparentar é fundamental. É a memtira. É a desonestidade. É também a redação da cartilha dos próprios direitos. (Lembro-me do comentário de Bataille, no livro A Literatura e o Mal, onde ele diz: "Diante da necessidade de ação, impôe-se a honestidade de Franz Kafka que não se concedia direito algum").

A reivindicação do oprimido equivale à violência do opressor. O oprimido não se questiona, não se revolta, não vira a mesa. Ele barganha, negocia, mantendo assim toda a situação de ajuste, de alienação. O oprimido, quando começa a realizar as próprias metas, acha que está tudo sob controle, acha que venceu. Luta por manter o que conquistou. O oprimido quando não realiza suas metas, quando seus desejos não são realizados, transforma-se em um invejoso. Estamos falando do opressor/oprimido enquanto relação, sem posicionamentos econômicos-sociais estabelecidos a partir da relação exploradora, da luta de classes. O pobre, o explorado, pode não ser o oprimido. O rico, o explorador, pode ser oprimido. Estar oprimido é sinônimo de estar enrodilhado. O caso da luta de classes, o caso da exploração econômico-social é um processo que só pode ser entendido enquanto deslocamento da organização de necessidades, das organizações sobreviventes.

O invejoso transforma em objetos, em ferramentas, tudo que está à sua volta, conseguindo assim desvitalizar, matar o outro. Esta atitude predatória é excelente para a consecução de seus objetivos. Ele pode se munir destes restos humanos e, sem questionamentos, realizar seus desejos.

Vivenciando inveja, vivemos enclausurados em nosso duplo, esta bolha protetora que possibilita contatos, exila o outro; vampirizando, parasitando, matamos e conseguimos sobreviver às custas do que destruímos. Ficamos sozinhos; é o tédio enquanto mesmice. Esta homogeneização vivencial mantem o autorreferenciamento. Quanto mais se desloca em comportamento invejoso, mais se mantém a fonte do deslocamento: a não aceitação dos limites. Monotonia, falta de motivação, tédio, são as estradas para um só destino: maldade, oportunismo, inautenticidade. Sobreviver implica em lutar, se esforçar para conseguir vencer. A violência se impõe. Avançar, conseguir ser o outro, ter o que o outro tem, livrar-se do outro, jogar fora o velho pai que atrapalha, internar, como louca, a mãe que já não faz nada útil, é uma imposição lógica e consequente deste processo. O duplo - o invejoso - é um robot, ele nada assume, ele não percebe as implicações de seus atos; além de se iludir, ele sempre acha que faz o melhor e se faz algo que possa parecer ruim é por não haver melhor coisa a ser feita. Explicações, justificativas são contadas. Sintomas desagradáveis aparecem, pois de tanto ser o duplo, a fim de manter o autorreferenciamento, ele já nem percebe o próprio corpo. Perde o corpo. Adoece. Toma remédios e/ou procura ajuda terapêutica, massagens, aulas de yoga, exercícios de tai chi chuan, acupuntura e incrível... melhora, isto é, arranja novas fontes para vampirizar, para parasitar, mais instrumentalização. Cada vez mais forte, mais aceito socialmente, mais justificado e explicado em seus problemas, transforma-se, via de regra, em poderoso. Violência é o que surge, medo (omissão) também. O álibi está estabelecido, o crime não será descoberto; já pode ser invejoso.

Pensa-se muito e percebe-se pouco. Vivências de presente contextualizadas no presente são esparsas. No início de nossa existência elas são frequentes, mas logo iniciamos o processo de categorização. Adquirimos recursos, senhas para decodificar, para categorizar. Aprendemos e automaticamente encaixamos, traduzimos e vamos criando os posicionamentos necessários à realização de nossas demandas/desejos. Sempre o ser humano possui a possibilidade de transcendência. Na maior parte das vezes, só a vivenciamos através de crises, que é a parada abrupta do deslocamento. Não tendo mais para onde deslocar, percebe-se o que está acontecendo: o caos da vida, a impossibilidade de funcionar, etc. Exaurido o recurso de deslocar, vem o pânico, vem a crise. É o vazio da desumanização (comumente conhecido como estado depressivo), é a perda da motivação, é o medo, é a perda da vontade de viver. Depressão é vazio, é desumanização. O processo de não aceitação da não aceitação leva à estação final: depressão. Já não consigo realizar minhas metas, não vale à pena viver, não tenho vontade de fazer nada, é o pensamento dominante do deprimido. Os prozacs e lexotans são placebos, são tentativas de construir novos andaimes para funcionar. Dostoievski já dizia: "A lógica sempre comporta o tédio", em outras palavras, a organização, a instrumentalização da vida, o esquema rígido e consequente que permite vencer é esvaziador, é tedioso. Tédio é o fastio, o desgosto, o aborrecimento. Baudelaire dizia: "O tédio é o que te torna cruel".

Como psicoterapeuta, como psicóloga, acredito que o comportamento humano, em toda a sua variedade, pode ser explicado por aceitação, aceitação da não aceitação, não aceitação da não aceitação e não aceitação. E isto só pode ser realizado através do estudo das configurações perceptivas e consequentes posicionamentos. Neste sentido, falar de inveja, de maldade, de desespero, é desnecessário. Se o faço é para possibilitar, aos leitores, percepções acerca da dinâmica relacional, acerca do questionamento e da visão psicoterápica gestaltista. Configurar percepções, implicações da relação ser-no-mundo é conceitualmente importante. Neste contexto, meus livros têm sido blocos, módulos para construção de uma abordagem relacional acerca do humano. Nunca me detive em estudo de casos clínicos; procuro sempre unidades conceituais a partir das quais possa ser vislumbrada a totalidade comportamental humana.

- Transcrito do meu livro "Desespero e Maldade", pags. 80 a 83




- "Desespero e Maldade" - Vera Felicidade A. Campos

Comentários

  1. Vera, no último parágrafo, você diz que "o comportamento humano pode ser explicado por...
    - aceitação;
    - não aceitação;
    - aceitação da não aceitação;
    - não aceitação da não aceitação.
    E isto só pode ser realizado através do estudo das configurações perceptivas e consequentes posicionamentos."

    Quais seriam essas configurações perceptivas? Como posso entender isso melhor? Obrigada :)

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  2. Clarissa, é como se estruturam as relações de cada um com o mundo e com tudo em volta. O que individualiza cada ser humano é a maneira como ele se percebe, percebe o outro, o mundo e a si mesmo. Abs

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  3. Vera,
    ando pensando muito nessa frase:

    "Diante da necessidade de ação, impôe-se a honestidade de Franz Kafka que não se concedia direito algum"

    e nos inúmeros direitos que me concedo... Quando reparo neles atentamente, percebo que são tantos que, muitas vezes, perco a noção do que é uma atitude limpa e desinteressada. Acho que o mesmo deve acontecer com milhares de pessoas (o que não justifica que aconteça comigo – revolver-se na lama não ajuda a limpá-la).
    Triste isso... Mas seu texto ajuda a ficar alerta.
    bjs

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  4. Oi Natasha,

    Espero que seja, para você, um constante questionamento.

    Beijos, Vera

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