Prazer, sedação e repetição

Tudo que é humano só pode ser globalizado se considerarmos que o biológico é a estrutura suporte de toda vivência relacional, perceptiva, psicológica portanto. Não havendo esta globalização, surgem os elementarismos, os causalismos e pontualizações acerca do que é humano, através, por exemplo, dos conceitos de natureza humana, instintos, dados culturais como construtores de humanidade.

O que seria prazeroso para o humano, o que propicia prazer às pessoas? Satisfazer suas necessidades ou ampliar suas possibilidades.

Prazer, como satisfação de necessidades, é o alívio, a diminuição da tensão, apontando sempre para sedação.

Prazer como ampliação de possibilidades, transcendência de limites das necessidades por exemplo, leva sempre a integração e a fusão.

Os principais prazeres responsáveis pela sedação de necessidade se referem a sexo e drogas. Sexo como aplacamento e drogas (alcool, maconha, cocaina, crack, tranquilizantes etc) como aplacamento e desaparecimento de tudo que rodeia, ambos excitam e demandam continuidade, repetição. Buscar estes prazeres é esvaziante, gera rotinas, monotonia muitas vezes camufladas por invenções ritualizadas, outras por variações de parceiros.

O prazer como ampliação de possibilidades acontece quando não se esgota na satisfação das necessidades. O mesmo prazer que aplaca pode ser percebido e vivenciado enquanto transcendência de limites. Geralmente isto ocorre na vivência contemplativa - êxtase religioso - ou na vivência de integração - fusão. Não há repetição, não há monotonia. Novos marcos foram encontrados, não há sedação, existem descobertas, motivação para o que está diante: o outro, a arte, o enígma, o descoberto.

O aspecto mais negativo e destruidor do prazer como sedação é o posicionamento que ele cria. Focado na satisfação dos desejos se perde de vista o outro e a si mesmo. O que está em volta é percebido no contexto da satisfação prazeirosa de necessidades ou é percebido como insatisfatório. A droga se transforma no que vai resolver tudo, o que vai realizar mágica. O outro é o objeto que vai satisfazer, não importa se vivo ou morto. Perversões e vícios caracterizam a vivência do prazer como sedação, como satisfação de necessidades. As linhas de parentesco são violadas, as caracteristicas etárias desaparecem, o mundo inanimado e até os animais são transformados em objeto de sedação e satisfação.

Infelizmente muitos psicanalistas (Lacan por exemplo) privilegiam o prazer como a realização do humano. Freud, buscando a anti-repressão sexual na época vitoriana - sec. XIX - enfatizou o prazer sexual como libertador do homem.  Visões elementaristas pensam assim, seja a não repressão, seja atingir o paraiso, atingir a bem-aventurança, seja o que se conhece como sublimação de instintos.

Na sociedade moderna, o prazer tornou-se o referencial de tudo que se precisa, a meta a ser perseguida, quer seja pelos prazeres sexuais, seja pelas drogas.

Para nós, prazer é o que existe quando nos percebemos no mundo com o outro. É o encontro, é transformar-se, é o respirar, caminhar, enfim, é o exercício das possibilidades relacionais, resultantes de estar disponível, resultantes de não estar preso e submetido às necessidades que clamam por aplacamento.



"Retrato de um Viciado Quando Jovem", Bill Clegg 
"Os 120 dias de Sodoma", Marquês de Sade
"Confissões de um Comedor de Ópio", Thomas de Quincey


verafelicidade@gmail.com 

Comentários

  1. É Vera esta busca pelo prazer torna-se constante, não tem limites ela é cansativa, esvaziante daí vem a depressão, não é isto?

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  2. É isso sim, ocorre com o prazer ou com qualquer busca (meta). Abs

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  3. Estimada Vera, não tenho me comunicado com você recentemente, mas continuo lendo seus livros e artigos de vez em quando. É 'estranho' que depois de ler suas obras, fica meio enfadonho ler textos que dão uma volta para dizer o que você diz em poucas palavras, e isso quando o conseguem. Seus textos são de uma densidade imensa, tem muito conhecimento condensado (acho que por isso os livros são 'finos'). Por que você expões os conceitos de forma extremamente direta e simples. tão simples que é difícil entender a primeira vista, pelo menos entender em profundidade.
    Prazer, sedação, repetição vão ao centro da questão, discernindo entre alienação e viver a vida no presente simplesmente, e sentí-la de pleno.
    Abraço,
    Augusto

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  4. Obrigada Augusto. Muito bom receber notícias suas e saber que você continua ligado nos questionamentos e explicações sobre o comportamento humano. Abraços, Vera

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