Sacrifício e restrição

O ser é possibilidade de relacionamento, apenas isto e isto é tudo. Não existem seres bons, maus, mediocres ou superdotados como preexistências aos dados relacionais.

Somos seres com possibilidades relacionais que, quando posicionados, mantemos arquivos de memória, estruturando o eu. O eu é o sistema de referências responsável pelas identificações. Confundir ou igualar o ser ao eu é reduzir as possibilidades a padrões e regras características do indivíduo. Somos seres relacionais limitados por referenciais posicionantes. Questionar e identificar esses posicionamentos cria dinâmica, faz mudar. Psicoterapia é onde esse processo se realiza ou é impedido a depender das metodologias e conceitos utilizados.

Atualmente é frequente ouvir psicoterapeutas dizerem que toda criança precisa de uma relação estável: os pais não podem estar separados. Opiniões baseadas em juizos de valor são alienantes. Pensar assim é responsável pela manutenção das ordens constituidas, demonstram o medo da mudança, a busca da adequação e segurança.

Sistemas e religiões, para manter as engrenagens que os sustentam, precisam de sacrifícios, renúncias, normas e rituais. Adquirir segurança como regra padronizada implica em sacrifícios e restrições. Adequar é encaixar; acontece que seres humanos não são objetos.

Qualquer coisa efetivada em função de normatizações seguem parâmetros: os que não cabem, devem ser cortados. Assim fazem os arautos das ordens constituidas, que como Procusto*, mantém seu reinado às custas de restrições e sacrifícios, ajustes e adequações que por sua vez resultam em sofrimentos insuportáveis.

A única maneira de evitar essa alienação adequadora é através da autonomia, verdadeiro antídoto do sacrifício e das restrições coisificantes.


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 * "Leito de Procusto" - no mito, Procusto era um assaltante na antiga Grécia que além de assaltos, submetia suas vítimas a sacrifícios terríveis: ele tinha uma cama na qual as colocava e se fossem menores que o leito, eram então esticadas, se fossem maiores que o leito, tinham as extremidades (cabeça e pernas) cortadas. Ouviam-se os gritos por toda parte e quando os deuses resolveram intervir, Procusto justificou-se dizendo que agia em nome da justiça por que as diferenças são injustas, permitem que uns se sobressaiam sobre os outros e que a sua técnica, a sua cama, iguala todos os homens. Seu reinado de atrocidades só terminou quando foi subjugado por Teseu, mas até o fim defendia-se achando que estava sendo justo igualando as pessoas. O mito é muito usado para mostrar tanto a intolerância com a diversidade, quanto a imposição de padrões nas áreas do conhecimento, seja na educação, ciência, política ou no cotidiano.













 

"A questão do Ser do Si Mesmo e do Eu", Vera Felicidade A. Campos
"Temor e Tremor", Søren Kierkegaard

verafelicidade@gmail.com

Comentários

  1. Olá Vera, em primeiro lugar quero dizer que fiquei encantada com o artigo que você escreveu, resumindo como você criou a psicoterapia gestaltista (vi o link para a Revista E-PSI aqui no blog, hoje...), além de facilitar o entendimento de sua abordagem teórica, deixa claro o magnífico e original trabalho que você vem desenvolvendo todos estes anos. Um artigo precioso!

    É realmente impressionante seu poder de síntese, seja quando resume 40 anos em 20 páginas, seja neste artigo "Sacrifício e restrição"! Li várias vezes, parece simples, parece mágico, mas quando paro e penso em mim, só consigo enxergar "leitos" inadequados: um nome, uma profissão, uma família, uma obra etc etc. Tudo muito adequado, e como diz você, muito questionável. Gostei de todo o artigo, mas gostei muitíssimo do primeiro e do último parágrafo.

    Ah! Maravilhosos também os dois livros no final: o seu, leitura imprescindível e "Temor e Tremor" é um dos meus preferidos.

    Abraço

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    1. Oi Ana, senti falta de seus comentários, geralmente ampliam meu texto!

      Questionamentos, contradições geram sempre sínteses - de tanto lidar com questionamentos e contradições surge o poder de síntese rsrsrs.

      Tudo que é indicativo de qualquer coisa, esgota-se em si mesmo, talvez daí a inadequação, a insatisfação que quando surge, quebra a inércia e recria dinâmica, enfim, as possibilidades sempre existem.

      Abraço

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    2. :-) obrigada, Vera.

      Quando você diz que "tudo que é indicativo de qualquer coisa, esgota-se em si mesmo", você quer dizer que, profissão, por exemplo, é uma atividade, uma maneira de ganhar a vida, quando passa a indicar, significar status, maneira de ser identificado, compromisso... começa a inadequação, insatisfação etc etc e assim por diante com relação a tudo, é isso? E aí é o momento de questionar os posicionamentos, recriar a dinâmica?

      Abraço

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    3. Exatamente Ana, neste momento se vê que o fundamental é mudar ou manter. Quando se opta pela estratégia de sobreviver, com a ilusão de mudança futura, se cria um jogo, que na sequência é devastador. Não cair no "leito" é a maneira de não ser sacrificado e também de não correr o risco de caber no "leito", ser encaixado, virando cúmplice ou continuador de Procusto.

      Abraço

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    4. Perfeita análise, acomodar-se à conveniência é mesmo cumplicidade e conivência com padrões opressores.

      Obrigada e abraço

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  2. O i Vera o artigo é maravilhoso, mais esta frase é espetacular: " única maneira de evitar essa alieanação é através da autonomia, verdadeiro antídotodo do sacrifício e das restrições coisificantes". Adorei também os comentários de Ana, abraços Rosélia.

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    1. Oi Rosélia, fico feliz de ter conseguido mostrar a importância da autonomia na vivência psicológica.

      Beijos

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    2. Obrigada Rosélia, eu também penso que esta frase explica muita coisa.

      Abraço

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