Aparência

Aparentar gera sempre impossibilidades mesmo quando cria facilidades.

Posições conquistadas, portas abertas, tarefas realizadas graças ao que se aparentou ser, saber ou ter, inicia um acúmulo de disfarces que também é simultaneamente o acúmulo de impossibilidades. Nas situações de ações decisivas, falta coragem e solidariedade, sobra engano e concessão. Na época em que passou a viver escondido devido a uma sentença de morte dada pelo Aiatolá Khomeini - governante iraniano - Salman Rushdie escreveu que muitas pessoas que o conheciam cediam ao medo e diziam que era respeito à autoridade, embora discordassem do absurdo de condenar à morte um autor pelo que escreveu.

Existem pais e mães, aparentemente extremados cuidadores de seus filhos, que escondem suas impossibilidades de doação, entrega e amor, neste cuidado que vitimiza e aliena. Aparentar amor é um engano geralmente mais tarde substituído por enganosos prazeres: droga, caridade alienante, militâncias sacrificadas, abnegações despropositadas. Como disse ainda, Salman Rushdie: "ninguém se tornava um pássaro preto pintando as asas de preto, mas, como a gaivota coberta de petróleo, perdia-se a capacidade de voar".

Aparentar é esconder, é a camuflagem para preservar a sobrevivência e conseguir ultrapassar o que se julga limitador.

Quando a vítima é alvo do outro, da sociedade ou das comunidades ela é um aviso antecipatório de estratégias dominadoras. Por exemplo, a criança sexualmente abusada é transformada em foco de interesse, de atenção e afeto, para que esqueça, para que se confunda, não aparente nada revelador do que sofre e do que é submetida. Cada vez mais impossibilitada de ser criança, de confiar no outro, ela se torna mais capaz de suportar ameaças e submissão; isso a faz perder suas possibilidades relacionais e coberta de sujeiras e escombros, mergulha nesta lama, aparentando viver com muito pouco.


 

- "Joseph Anton Memórias" de Salman Rushdie


verafelicidade@gmail.com

Comentários

  1. Perfeito, Vera.
    Nos disfarces, nas aparências, é impossível a vivência do presente contextualizada no presente, não há disponibilidade diante do que acontece, daí as impossibilidades, não é mesmo? E o “cuidado que vitimiza e aliena” não se vê só nas relações pais e filhos ... O engano de aparentar amor, tão comum, talvez seja o pior dos disfarces.
    Bj.

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  2. Vera, que texto lindo. Só consegui acessar o blog agora de noite. Fiquei emocionada ao ler. Senti de imediato o peso do esforço que manter as aparências requer. Num dia como hoje, que passou para mim como tantos outros nos quais manter o que se conquistou a qualquer custo é o essencial, ler o seu texto é uma pausa na loucura, um pouco de verdade no meu dia e me emocionou, me fez sentir viva.
    Beijos.

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    1. Obrigada Natasha. A constatação de problemas e não aceitações é sempre organizadora e dinamizadora.

      Beijos

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