Natureza

Spinoza dizia que a natureza é Deus ou Deus é a natureza. Com esta afirmação, ele situou o clássico dualismo entre corpo e alma de Descartes - denso e sutil - em outra dimensão; ultrapassou o dualismo cartesiano, mas, gerou outro: natureza incriada e natureza criada ou infinita e finita ou metafísica e objetiva. Natureza, em Spinoza, é o que está aí e existe por si mesmo, é a divindade infinita, eterna. Pensar natureza como prévio é o que possibilita o dualismo criado/incriado (originado/Deus) e as repercussões destas colocações são inúmeras nas metodologias científicas.

Esta idéia de natural como não criado foi responsável pelo estabelecimento de conceitos reducionistas e arbitrários dentro da psicologia: talento, dom, instinto, por exemplo. Freud, como homem do século XIX, herdeiro de tradições biológicas mecanicistas do século XVIII, só podia pensar o homem (sua humanidade, referencial psicológico) como algo complexo, mágico, mas sempre determinado e estabelecido por condições biológicas, por “forças naturais”. A idéia da libido, como força propulsora do comportamento, repousa nesta visão biológica, nesta explicação restritiva. O homem era lançado no mundo e sua “natureza humana” iria se explicitar através da realização de seus instintos e pulsões.

A idéia de natural gerou também uma série de empecilhos para o desenvolvimento das condições relacionais humanas. Conceitos como “selvagem sem alma”, “sociedades primitivas”, “religiões animistas” explicitam quão danosa foi a fragmentação e dualismos conceituais para a humanidade. Tipificando, explicando através de causas e resultados, perde-se a totalidade relacional do ser-no-mundo.

Quando se diz que é da natureza do pobre submeter-se ou da do artista ser livre, ou ainda quando se acredita que mulheres nascem para gerar, cuidar e alimentar, enquanto homens conquistam e inovam, lutam e transformam, tipifica-se, criando pequenos nichos incapazes de abranger toda reversibilidade da dinâmica humana.

Não existe um prévio gerador como condição natural, não existe natureza humana ou instinto; o que existe são necessidades e possibilidades relacionais caracterizadas por autonomia, medo, barganhas, justificativas, metas. O ser humano é uma estrutura biológica com necessidades orgânicas de auto-manutenção e possibilidades de transcender esse referencial de necessidades. Essa transcendência de sua condição biológica é que lhe dá a percepção de ser humano. Transcender a imanência biológica é perceber a própria humanidade. Todo ser humano ao nascer é um organismo com necessidades e possibilidade de relacionamento.

O que é visto como natureza humana nas explicações causalistas, eu conceituo como dinâmicas relacionais constituintes, que, por acúmulo de superposições, podem até se tornar aderentes, constituídas.

















- “A antinatureza - Elementos para uma filosofia trágica” de Clément Rosset
- “O enigma de Espinosa - A história do filósofo judeu que influenciou uma das maiores mentes nazistas” de Irvin D. Yalom


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