Reflexões sobre o medo

Datas e eventos às vezes são referenciais, marcos que levam a reflexões e constatações.

A vitória da Alemanha neste Mundial de futebol de 2014, me lembrou que setenta anos atrás - 1944 - a guerra matava e destruía; a monstruosidade dirigida pelo partido nazista alemão ceifava vidas e exercia bárbara crueldade contra milhões de pessoas. Os objetivos genocidas eram abrigados pelo mesmo povo que hoje celebra a vitória e confraterniza no Mundial. Derrotado e extirpado o nazismo, foi possível recuperação e superação da destruição e medo, o horror foi superado pelo povo alemão anteriormente cooptado.

Vítimas de violência, de agressões físicas e morais, desenvolvem medos que podem ser superados de maneiras diversas, seja através do questionamento, seja aumentando o desejo de segurança, de proteção a todo custo, mesmo que destruindo o que ameaça. Inseguros e medrosos são manipuláveis, presas fáceis de ideologias fascistas como observamos tanto na Alemanha dos anos trinta e quarenta, quanto em Israel dos últimos sessenta anos. A Alemanha, ao longo destas sete décadas ampliou seus processos democráticos e humanizadores e o Estado de Israel - criado para abrigar os perseguidos na diáspora, para consolidar a imigração de judeus para a Palestina (a aliyah) - nos mostra o aspecto de superação do medo pelo aumento e garantia da defesa e segurança, mesmo que isto implique em genocídio, em destruição de outro povo e assim, pelo medo se fortalece, tanto quanto se isola.

É eloquente o depoimento de uma jornalista, correspondente do jornal inglês The Independent, intitulado "Por que estou a ponto de queimar meu passaporte israelita"*, onde descreve sua indignação com a ascensão da violência e do fascismo entre jovens parlamentares israelitas, que justificam e fomentam o ataque a civis palestinos - idosos, mulheres e crianças - baseados em pensamentos e mesmo frases idênticas às usadas pelos nazistas alemães nos anos 30 e 40. A jornalista é uma mulher madura, que perdeu parte da família nos campos de concentração.

Inúmeros livros foram escritos com análises da origem histórica e política dos conflitos entre Israel e seus vizinhos, dos interesses ocidentais sobre o Oriente Médio, do ativismo político de grupos palestinos, de partidos extremistas no parlamento israelita, das explicações do Estado de Israel; desnecessário repeti-las aqui. O que me chamou a atenção na reportagem citada acima e nos acontecimentos da última semana, me levando à reflexão, foi como é enfrentado e manipulado o medo. Como diz Hannah Arendt: "quem sabe que pode divergir, sabe também que de certo modo está consentindo quando não diverge".

A guerra Israel-Palestina alcança também as redes sociais, ampliando enormemente os mecanismos de manipulação do medo, tanto em seus territórios, quanto além deles. É uma guerra que se transforma em evento midiático, com perfis robotizados de ambos os lados em busca de "torcedores" em todo o mundo (tanto o Governo de Israel, quanto o Hamas assumem a criação dos perfis): a associação da hashtag de futebol com a do conflito Israel-Palestina, durante o Mundial de Futebol, transformou-se em hit no Twitter, captando a atenção de jornalistas e público, mas principalmente, intervindo e condicionando ações, reações e medos entre os moradores das regiões em conflito, além de considerar como antissemitismo o relato das barbaridades ocorridas na Faixa de Gaza, o fato de lamentar-se a destruição de povoados palestinos, tanto quanto a denúncia de atos desumanos como, por exemplo, alguns cidadãos israelitas carregarem suas cadeiras para o relento da noite, a fim de assistir, comendo pipoca, à performance de seus generais, aplaudindo a cada bombardeio. O Hamas, por sua vez, manipula inúmeros tweets vitimizando-se e buscando manter o engajamento dos jovens palestinos, que podem não considerar o Hamas ou a Autoridade Palestina “como sua melhor ou única opção”.

Psicologicamente, ao enfrentar o medo, participamos e nos transformamos ou garantimos proteções, apoios, seguranças que nos blindam e nos mantêm comandados pelo próprio medo; ficamos aparentemente mais fortes, entretanto, sempre prisioneiros do que nos infelicitou.

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* “Why I’m on the brink of burning my Israeli passport” de Mira Bar Hillel, The Independent 





- “Sobre a Violência” de Hannah Arendt
- “Eu e Tu” de Martin Buber
- “Colônia Penal” de Franz Kafka


verafelicidade@gmail.com

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