Sistema de referência

Perceber é uma relação, um comportamento decorrente de relações estruturais que configuram um Fundo (contexto) e um dado, uma situação (Figura). As decorrentes e contínuas percepções são os contextos que possibilitam constatação (percepção da percepção) que é o conhecimento, criando valores e significados e também classificação e nomeação do percebido.

Os sistemas de referência são formados desde os primeiros anos de vida, tanto quanto as estruturas de aceitação ou de não aceitação do outro, dos limites, de si mesmo. Os sistemas de referência são modais por excelência, desde que estão também imersos em horizontes culturais, sociais, econômicos. Os elos de fixação desta impermanente e anônima atmosfera são mantidos pelo outro. Estar com o outro, ser por ele criado, educado é o que permite constatar e integrar ou desconstruir sistemas de referência: o próprio corpo aceito ou não, assim como as referências culturais e sociais.

Através do outro, geralmente pai e mãe, aprendemos uma língua, significados, nuances e assim adquirimos ferramentas e habilidades que permitem inclusão, inadequação, operosidade, passividade, realização ou não realização de necessidades, aberturas ou fechamentos para as possibilidades que estruturam o humano.

Sistemas são referenciais à medida que posicionam regras e padrões, permissões e proibições. Todo relacionamento gera posicionamentos, geradores de novos relacionamentos, que por sua vez geram novos posicionamentos indefinidamente; consequentemente, nos sistemas de referência a variável de estar defasado, inadequado e superado é constante, entretanto, ao serem convertidos em padrões aceitáveis ou não, eles se tornam marcos rígidos criadores de muito desassossego e insatisfação quando assim percebidos. Mais de quinhentos anos e ainda a América Latina conserva a idéia de “branco, civilizado, europeu”, frequentemente se pensa que olhos claros definem superioridade e riqueza. A idéia ou preconceito - desde que conceito a priori  independente de qualquer evidência a não ser frequências modais (norma estatística) - cria as imunidades “amorosas” atreladas ao pai, à mãe, crenças que impedem mudanças como investigação de crimes sexuais e em casos mais extremos infanticídio, parricídio.

Toda percepção vai sempre ser estruturada em um contexto - Fundo - que mantido permanente e repetido, cria unilateralizações responsáveis por fragmentação.

As vivências residuais de segunda, terceira mão, que garantem que o que é bom para pessoas famosas é bom para todos, são despersonalizantes e fazem buscar imitações: o aderente e artificial, o produzido e copiado. Quanto mais copia, mais se anula, mais se vira o sistema de referências que o constitui, mais contingencia suas decisões e determinações nas pequenas urnas oferecidas para contabilizar o acerto, a conformidade ou os desacertos. Viver segundo o estabelecido é o fundamento para que se realize novos estabelecidos, entretanto, proteger-se e dedicar-se aos bons resultados conseguidos ou pretendidos é frear, tentar deter o momento, a temporalidade. O belo, o bom, o feio, o ruim, o adequado e o inadequado não são fixos, eles mudam com o passar do tempo (temporalidade), com novos recortes sociais e culturais, estabelecem novos sistemas de referência e criam novamente aceitação e não aceitação, alienação, medo e desejos de segurança. O controle e a obsessão, o querer “ficar bem na foto” mostra bem como a desumanização e massificação, dela resultante, saturam os referenciais. As conhecidas “carteiradas” (apresentação de documentos que comprovam, demonstram o poder e suas redes), além da exibição das redes relacionais que sustentam suas demandas e realizações, substituem as referências dos oitocentos e novecentos, onde sobrenomes tradicionais, ilustres, poderosos, caminhavam, falavam, ouviam, eram acompanhantes significativos do poder e acesso ao que se pretendia.

As demandas econômicas de mercado criam, no curto prazo, grandes dinâmicas, reversibilidades necessárias para vender e reciclar produtos. Neste ambiente, o novo sempre é substituido, reciclado. A datação de produtos cria prazo de validade para seu uso, cria o démodé, o velho, o fora de moda; tudo isto impõe mais cópia, mais imitação, mais desistência, ou seja: abrir mão dos próprios critérios e vivências para seguir a corrente, a tendência e nela afundar como forma de sobreviver. É uma pseudo dinâmica, pois que se está posicionado em função de resultados; isto ocorre em várias situações e contextos, tudo é avaliado: artes, esportes, escolas, universidades, ciência, religião e família.

O maior sistema de referência - dinamicamente integrador/desintegrador - é o outro: o ser humano que nos aceita ou não aceita.



 - “O Misantropo” de Molière
- “Filoctetes” de Sófocles
- “A extraordinária viagem do faquir que ficou preso em um armário Ikea” de Romain Puértolas

verafelicidade@gmail.com

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