Ser humano - II

 

 

 

A vivência do presente, enquanto ocorrência, fato, realidade e consistência é o que nos possibilita diálogo, encontro. Quando se busca resultados, quando se utiliza o que acontece como matéria prima para realização de desejos, planos e metas, tudo que acontece é transformado em jogo, corrida de obstáculos ou varinha mágica facilitadora de propósitos.

 

Estar no mundo com o outro é um processo sempre cooptado por um viés utilitarista, isto é, a sobrevivência, pois a palavra de ordem, o objetivo básico do viver é sobreviver. Quando chegamos a essa evidência, viver para sobreviver, deixamos de ser os mais evoluídos animais da escala zoológica, ficamos iguais a todas as outras espécies e sobreviver é a regra, o objetivo. Nesse ponto, vêm as explicações deterministas do comportamento humano, assim como as explicações mágicas fundamentadas em Deus, seres supremos e superiores ou em reencarnações.

 

Transformado em sobrevivente, o outro existe para ser utilizado em função de desejos e propósitos, é a perda da humanidade, são as guerras, abusos contra crianças, fome, miséria, a injustiça que animaliza, desumaniza o ser humano. É difícil para ele não se deter no nível de sobrevivência, parada desumanizadora. Constrói o autorreferenciamento, que impermeabiliza para o que acontece e, assim, enrijece e esvazia. Podemos dizer que o trabalho psicoterápico é todo ele dedicado a quebrar essa impermeabilização desumanizadora: o autorreferenciamento.

 

Se dedicar a sobreviver, nos vários níveis que isso abrange, da família ao social, é colapsar. É se deter na busca, na satisfação das necessidades de sobrevivência, que vão desde comer, beber, dormir e se relacionar sexualmente, até ser reconhecido, ser socialmente considerado, ganhar dinheiro e se inserir nos padrões significativos e valorizados.

 

A busca de resultado – a meta a atingir – fazer parte do grupo daqueles bem situados, dos que conseguiram, direciona todo o comportamento e as motivações para o depois, para o futuro. Essa negação do agora, do que existe, é esvaziadora: transforma o que acontece em estrada, caminho para o que se deseja que aconteça e, assim, tudo é significado, traduzido e percebido em função dos próprios objetivos, metas, medos e apreensões. No autorreferenciamento, os próprios critérios, vivências e desejos são os sinalizadores determinantes do que acontece.

 

Em resumo, tudo fica reduzido ao que se considera bom ou mau e destrutivo. Não existe mais o outro, o mundo, a realidade, pois tudo é traduzido e significado em função dos próprios critérios e códigos de sobrevivência, sucesso e insucesso, satisfação e insatisfação. Apreciação desvinculada do que ocorre e vinculada ao que se tem ou deseja, significa colocar-se como centro de tudo, e, assim, estabelecer regras, direitos, deveres e exigências que validam a existência.


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 "Como bem nos alerta a dialética, o homem se desenvolve mesmo na alienação" - Vera Felicidade, in: Tudo é relacional - Causalidade nada explica 

"Para haver mudança não basta vontade e desejo de mudar, são necessárias antíteses, situações, realidades que se antagonizem" - Vera Felicidade, in: Emparedados pelo vazio - Bem-estar e mal-estar contemporâneos 

 "Transformar o indivíduo que está impermeabilizado em participante,  via enfoque psicoterápico, é criar novos encontros, novas configurações" - Vera Felicidade, in: Autismo em perspectiva na Psicoterapia Gestaltista

 

 

 


 


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