Ser humano - IV

  

 

Ao longo dos séculos foi desesperador lidar com o que se entendia como a “horda humana”, desde os raptos tribais às matanças rituais, assim como às guerras fratricidas e de conquista territorial.

 

Estados, leis, regras foram criados para organizar e controlar os seres humanos reduzidos à sobrevivência. Entretanto, o espírito das leis, a criação de valores universais, os pilares religiosos aumentaram os níveis de sobrevivência, de despersonalização ao desenvolverem esses valores e normas, pois as medidas de avaliação do humano passaram a substituir o avaliado. A máscara, o invólucro tornaram-se definidores. Valores e regras são geradores de medo, raiva e apoio. Ter o que estabiliza, fazer parte do que brilha e apoia é o que se deseja. Quando a filiação às regras por outros ditadas é o básico vive-se em função de resultados, abrindo mão, atropelando o presente, o que existe. O Estado, a Igreja, a defesa do privado são constantes no espírito das leis, e, assim, novas divisões são criadas: estar dentro ou fora da lei é um marco civilizatório que, frequentemente, barbariza devido às defasagens e unilateralismos de seus propósitos. Sem lei é pior, mas a lei pouco muda, desde que não apreende as contradições intrínsecas aos processos de competição e ganância gerados pela não aceitação do que ocorre, dos limites.

 

Essas questões de aceitar e seguir a lei, também remetem aos mandamentos estabelecidos por Deus, segundo algumas crenças religiosas. Não matarás, não roubarás etc. descrevem condições intrínsecas ao lidar e perceber o outro. O que os mandamentos, assim como as leis, revelam, é o estado de despersonalização, de autorreferenciamento que atinge os seres humanos. Isso abrange relacionamentos familiares e sociais. A pedofilia e o feminicídio atestam essas motivações desumanas. Só importa o que se deseja e ambiciona e o que se quer destruir quando atrapalha.

 

Quando o outro não é percebido como outro ser humano, ele é percebido como objeto de realização ou de impedimento de tarefas, obrigações e desejos. Trata-se da sua transformação em objeto que é útil ou inútil, que atrapalha ou ajuda. A percepção do outro como ser humano é estruturada pela aceitação que se tem de si mesmo, das próprias possibilidades e incapacidades. Quando o indivíduo se aceita, ele não parasita, não utiliza o outro para consecução de seus desejos, obrigações e tarefas.

 

É a aceitação do que se é, do que se vivencia que faz tudo mudar. A pobreza, por exemplo, quando aceita e apreendida em suas estruturas sociais e econômicas permite que se assuma posições, questionamentos não predatórios da sociedade em que se vive. Sem questionamentos, reduzidos ao desejo de ter o que não tem, matando, roubando ou se deixando explorar, sem apreender as contradições, sem constatar que o que apoia oprime, o ser humano é reduzido a sobrevivente vitorioso ou a um péssimo sobrevivente fracassado. Entender a luta de classes, as desigualdades sociais em função dos referenciais de fracasso ou sucesso é desumanizador. Ele, o ser humano existe para viver, encontrar o semelhante e realizar suas possibilidades, transformando ou aceitando seus limites ao se questionar e ser transformado pelos encontros que congelam ou dinamizam horizontes. O encontro sempre possibilita questionamentos e isso pode ser dinamizador ou imobilizador, as continuidades das vivências permitirão personalização ou despersonalização. O encontro entre dois seres humanos, não necessariamente significa que ambos estão disponíveis e percebendo o outro como semelhante. Às vezes, o indivíduo é percebido como instrumento válido para a consecução de desejos, metas e propósitos. Quando o encontro se dá entre duas pessoas autorreferenciadas, ele é mais um exercício de conveniências e avaliação do que pode ser bom, ruim, útil ou inútil. Quando é entre o indivíduo que é disponível e outro autorreferenciado, mudanças surgem, o autorreferenciado pode se transformar, aparecem questionamentos, ou, o disponível percebe a ilusão, as distorções que motivaram seu comportamento, e muda atitudes.

 

Os processos sempre apontam para mudanças que podem ser convenientes ou inconvenientes a depender das motivações: comprometimentos e disponibilidades.


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 "Como bem nos alerta a dialética, o homem se desenvolve mesmo na alienação" - Vera Felicidade, in: Tudo é relacional - Causalidade nada explica 

"Para haver mudança não basta vontade e desejo de mudar, são necessárias antíteses, situações, realidades que se antagonizem" - Vera Felicidade, in: Emparedados pelo vazio - Bem-estar e mal-estar contemporâneos 

 "Transformar o indivíduo que está impermeabilizado em participante,  via enfoque psicoterápico, é criar novos encontros, novas configurações" - Vera Felicidade, in: Autismo em perspectiva na Psicoterapia Gestaltista

 

 

 


 

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