Apegos e garantias




Querer manter o que sustenta é criar monotonia. Equivale à redução ou ampliação de espaço. Nesse sentido a satisfação de necessidades é sempre uma garantia que leva à diminuição da realização de possibilidades. Essa gangorra, essa oscilação descentraliza ao criar pendularidade. O tic-tac constante esvazia. São criadas regras, dogmas, deveres. Vive-se por e para, transformando o como em repetição. Até as crianças, que tinham uma vida caracterizada por poucos compromissos, agora têm agendas e vivem preparando o futuro. Enjaular, organizar são palavras de ordem. Tudo é organizado e sistematizado em função da aquisição de know-how, de habilidades para o futuro. O que se desenha nestes próximos 9 bilhões de habitantes é asfixiante. Galgar novos espaços é antes de mais nada criá-los, as complexidades situacionais aumentam. Estagnação é uma constante. O ser humano busca se adequar aos processos que o desumanizam. A falta de discernimento, o buscar vencer, a concorrência que se estabelece e funciona como iniciativa é muito desumanizadora. Questionar isso, dizer não a esse processo organizador de rebanhos que seguem lideranças para atingir comida e água, é urgente. Caminhamos para abismos, acreditando atingir planícies douradas. Garantias dadas por sociedades nas quais o homem é transformado em massa de manobra, reduzido a mão de obra produtiva, são alienadoras. Toda vez que existe apego - família, hábitos e crenças - em função de garantias, como velhice amparada e vida satisfatória, surgem sub-humanos: não esquecer Hitler, Stalin e os novos organizadores de necessidades e direitos de seus comandados, seus cidadãos, com os muros protetores, as armas na mão, os amplos estádios, a inserção de todos nos mega-espetáculos. Nas estruturas do mega-espetáculo o ser humano é ator, prestidigitador, animador, qualquer coisa que não reflita, nem faça aparecer sua possibilidade de criar, questionar, mudar e dizer não ao que o destrói. Neste contexto, em um mundo de 9 bilhões de pessoas, necessário se torna administrar os poucos recursos para atender aos primeiros da fila, por eles próprios formada e mantida. Vale lembrar de Bruno Latour falando do Titanic: “Para retomar a metáfora já gasta do Titanic, as pessoas esclarecidas veem o iceberg surgir diante da proa; sabem que o naufrágio é inevitável; apropriam-se dos botes salva-vidas; pedem à orquestra que se demore tocando canções de ninar para poderem aproveitar a escuridão da noite e fugir antes que a forte adernação do navio alerte as outras classes!” (Bruno Latour, A Europa como Refúgio, in A Grande Regressão Um Debate Internacional Sobre os Novos Populismos e Como enfrentá-los, pag.141).

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