Autorreferenciamento

"Duas tarefas no início da vida: limitar seu círculo cada vez mais e verificar continuamente se você não está escondido em algum lugar fora do seu círculo" - esta frase de Kafka é uma maneira de resumir o autorreferenciamento.

Vivenciando o que ocorre no presente, no aqui e agora, estamos disponíveis para o outro, sem regras, sem medos. É a dinâmica relacional que permite teses abertas a antíteses, desencadeadoras de sínteses. Por causa disso os seres humanos motivam-se, apreendem, desenvolvem-se, relacionam-se. Quando este processo relacional fica posicionado nos próprios padrões, estrutura-se o autorreferenciamento

Podemos dizer que o eu, ego é o autorreferenciamento, é o posicionamento.

Quando reduzido a suas posições, sua história de vida, seus sucessos e fracassos,  suas metas, o indivíduo se autorreferencia. Passa a ser o centro à partir do qual tudo é percebido, pensado, lembrado. Ser centro é estar posicionado.

O contexto, o fundo não é percebido, diz a lei da percepção, a reversibilidade entre figura-fundo sempre existe, afirmaram os gestaltistas.

Posicionado, autorreferenciado, o homem passa a ser o fundo, o contexto imutável de todas as suas percepções. Ele passa a ser a medida de todas as coisas. Tudo é avaliado, valorizado ou desvalorizado em função do que é bom, do que é ruim, do que é útil, do que é inútil para ele. Ao construir este sistema de valores, estabelece também, regras e padrões que o massificam. "Autorreferenciados nos posicionamentos relacionais estruturadores do eu, lutamos pelo que criamos e produzimos: nossa família, nosso trabalho, nossos bens, nossa criatividade, passando a estabelecer relações em função de critérios preexistestes, defasados em relação aos contextos vivenciados. É o antes e o depois que nos norteiam. É a massificação, é a desvitalização. Esse processo esvazia a medida em que exila o ser como possibilidade de relacionamento" - pag. 36, A Questão o Ser do Si Mesmo e do Eu

"O ser humano, enquanto possibilidade de relacionamento só existe no presente, no aqui e agora. Contextuado em antes - no passado - ou em depois - no futuro - ele se posiciona. É a sua história, seus medos, seus desejos, suas necessidades, convicções que o guiam. É o eu situado, é o autorreferenciamento" - pag. 38, A Questão o Ser do Si Mesmo e do Eu

Quando o autorreferenciamento é a base de tudo, tudo fica contaminado: percepção, pensamento, comportamento, leituras,  opiniões, relações etc.

Para manter o posicionamento, o autorreferenciado se mune de aderências que o tornam mais blindado às dinâmicas da vida, tudo passa a ter o sentido ditado pelas necessidades:  saber o que se é, o que se quer, qual o propósito da existência em função de suas metas, desejos e valores,  é necessário para manter os posicionamentos que suportam o seu vazio; deste modo, só lhe resta escolher, decidir, lutar, querer. Ele luta por um mundo melhor onde suas necessidades serão satisfeitas.

No autorreferenciamento a percepção do outro, por exemplo, é contextualizada nos próprios padrões. Consequentemente surge a idéia de semelhante a mim, diferente de mim. Assim são gerados os preconceitos. O etnocentrismo é um exemplo de autorreferenciamento ampliado para todo o contexto social, explícito na idéia "indios não têm alma", por exemplo, ou em crenças de que sociedades africanas, sociedades tribais são sociedades primitvas. Essa valorização é arbitrária, autorreferenciada.

Ao desejar: "meu filho terá uma vida melhor que a minha", este amoroso propósito paternal está prenhe de autorreferenciamento. Referenciando-se nas próprias vivências, considerando-as não satisfatórias, espera que o filho obtenha melhores resultados, cria compromissos e modelos, estruturando assim, no filho, gratidão dependente, ou revolta, ou frustração, ou culpa, ou medo, raiva e impotência; esses fatores são responsáveis e resultantes da não aceitação:  nunca ter sido aceito pelo que é, mas sim pelo que deveria ser.

Temos assim a sociedade de consumo, mantida por reivindicações,  pela violência e pela depressão.

Questionando, sendo questionado, através de impasses do aqui e agora e de antíteses proporcionadas pela psicoterapia, retoma-se a dinâmica, surge a mudança, neutraliza-se o autorreferenciamento, é a disponibilidade do estar com o outro no mundo.














- Individualidade, Questionamento e Psicoterapia Gestaltista, Vera F. A. Campos

- A Questão do Ser, do Si Mesmo e do Eu, Vera F. A. Campos

 
verafelicidade@gmail.com

Comentários

  1. Vera,

    Adorei o texto, muita coisa ficou (mais) clara.

    Ana Claudia

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  2. Que bom Ana Cláudia, que o artigo ampliou sua percepção sobre autorreferenciamento. Abs. Vera

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  3. Vera então no autorreferenciamento o mundo, a vida gira em torno exclusivamente dos interesses e desejos de uma pessoa?

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  4. É, o autorreferenciado se percebe como centro de tudo, percebe tudo a partir de si, dos próprios interesses e desejos; acha que o mundo "gira em torno dele". Bjs.

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  5. Vera, quando conseguimos viver sem a sombra da ansiedade (que leva à depressão como vc explicou no outro post), conseguimos por consequência estar disponíveis para o outro? Ou estar disponível envolve mais do que viver sem ansiedade? obrigada : )

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  6. A ansiedade impermeabiliza para o outro, o outro é percebido apenas em função de desejos, metas e demandas geradas pelo deslocamento da ansiedade. Estar disponível para o outro implica em se aceitar; sem aceitação, mesmo que não haja ansiedade, não haverá disponibilidade para o outro nem para o mundo se a pessoa não se aceita. Ansiedade é um sintoma, existem outros sintomas da não aceitação, da neurose. Abs

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  7. Ok, Clarissa. Hoje a noite vou postar "A Inveja", talvez complemente melhor para você as questões da não aceitação: ansiedade, autorreferenciamento etc. Abs

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  8. Oi, Vera. Gostei muito do texto "A inveja". Muita coisa ficou mais clara, e o que não ficou, consegui entender melhor lendo outros posts. Mesmo assim, ainda tenho um monte de dúvidas, então acho que, se eu começar lendo seu primeiro livro, pode ficar mais fácil. Eu o procurei na internet, mas está esgotado na Cultura, na Saraiva também não achei. Sabe onde posso encontrá-lo? Obrigada.

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  9. É Clarissa, para realmente entender minha teoria você tem que ler meus livros. Não estão distribuidos mais nestas livrarias, mas ainda tenho exemplares para venda do "Conceituações..." q é o 1º livro: R$15,00; do "Relacionamento Trajetória do Humano" q é o 4º livro: R$15,00; do "Terra e Ouro são Iguais" 5º livro: R$20,00; "Desespero e Maldade" que é o 6º livro: R$20,00; "A Questão do Ser do Si mesmo e do Eu" 7º livro: R$20,00; "A Realidade da Ilusão a Ilusão da Realidade" 8º livro: R$20,00 - (os únicos livros que não estão a venda são o segundo e o terceiro que estão esgotados e não tenho nenhum exemplar extra) me diz o que você quer que lhe envio minha conta bancária para deposito e coloco no correio para seu endereço. Abs

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