Discernimento

É difícil existir discernimento quando se está preso ao passado (a priori) ou ao futuro (expectativas e metas). Todos os processos, todas as evidências são niveladas em função do que se deseja e assim, separar o joio do trigo fica impossível, pois a homogeneização é feita percebendo ambos como plantas que alimentam.

Transformar problemas em justificativas é uma maneira de validar a submissão e acomodação ao que impede liberdade e crescimento. Manter as “válvulas de escape”, o uso do outro, as mentiras viabilizadoras de sucesso, por exemplo, gera hábitos, vícios que solapam o discernimento. Sucesso a qualquer preço cria teias, armações necessárias à consecução do planejado. Vivendo para o futuro, as avaliações e cogitações se referem sempre ao que ajuda ou atrapalha, tanto quanto transforma o apoio anterior em obstáculo que agora deve ser ultrapassado; cumplicidades e acertos são estabelecidos. Nestas estratégias se perde coerência e continuidade. A flexibilidade é transformada em rigidez, em tenacidade para obter o necessário, a peça mínima e fundamental para o álibi que cria obcecados.

Preocupados em realizar planos, os indivíduos tendem a desconsiderar o que não é favorável à concretização de seus propósitos. A impermanência dos processos aponta sempre para a mudança, mas isto cria desespero quando se está agarrado ao “tem que acontecer como eu planejei”. A constatação de estar sendo superado, ultrapassado ou levado pela corrente é assustadora e apenas se percebe que os sonhos estão sendo roubados, ameaçados pela vida. Ilhado pela depressão, pontuado pelos fracassos a evitar e vitórias a obter, o indivíduo não sabe o que fazer. Tudo que parecia bem já não o é; as certezas se convertem em dúvidas. Medo, angustia, ansiedade surgem e sequer são percebidas. Não há discernimento, apenas constatação de perda, abandono e solidão. Mesmo neste momento ele não percebe o que ocorre, se sente perseguido, ameaçado, privado de tudo que tinha direito.

Perceber tanto diferenças quanto igualdades é necessário para conviver, para ultrapassar os limites de receitas e regras de sucesso e realização. A homogeneização gerada pelas necessidades antagoniza-se com a realização da possibilidade de estar no mundo com os outros. Cumplicidade não é solidariedade, segurança não é autonomia, omissão não é aceitação de limites e dificuldades. Assistir ou propiciar ajuda pode ser a forma de manter o outro submetido às estruturas alienantes. Estimular andanças, caminhadas à beira do abismo é destruidor, principalmente quando se alega, como álibi redentor, o não saber do perigo.

É necessário liberdade para ser com o outro, para não viver em função de imagens aceitáveis e manutenção de biombos que escondem o que se considera escuso e inaceitável.

Discernir é exercer liberdade, é globalizar contradições e isto é impossível quando se está comprometido, preso às estratégias, às regras dos jogos que podem possibilitar conquistas.


-“Zelota - A Vida e a Época de Jesus de Nazaré” de Reza Aslan


verafelicidade@gmail.com

Comentários

  1. Apenas um pequeno registro de como acontece comigo tudo que foi colocado e que gostei muito.Voce é icrível, sempre com uma surpresa maravilhosa.Ana Cristina. bjos

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    1. Obrigada Ana e que a leitura do blog continue sendo esclarecedora para você, beijos. Vera

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