Hipocrisia

Mentiras, traições originam a hipocrisia, mas, a hipocrisia tem diferenciadores necessários: atitudes convenientes, solidárias, um fingimento constante; como dizia Tartufo "não há nenhum pecado se pecar em silêncio". Mentirosos, traidores ao serem descobertos, desaparecem; metaforicamente são sementes que não geram frutos. Na hipocrisia, as benesses e colheitas prometidas são esperadas; disfarçar o evidente através de mentiras e traições é o que a caracteriza, gerando frequentes situações enganosas; é como caminhar no gelo: sólido ou fragilmente inconsistente a depender da temperatura sazonal.

Ser enganado pelo que é familiar, pelo que é confiável, é demolidor: o sócio, o cônjuge que devagarinho tudo transfere para o próprio poder; o filho que se apodera de jóias e bens para financiar vícios e desejos; o que se coloca como amigo, mas se esquiva quando solicitado, os exemplos são muitos. Hipócritas são melífluos, amigáveis e prestativos no desempenho de seus planos e disfarces. Na esfera social são os demagogos que tudo prometem para enganar seus adeptos. Nos regimes totalitários, hipócritas são os reféns do poder, são os espiões, os denunciadores, os governantes que lutam pela boa ordem e pela salvação de indivíduos, criando campos de concentração, prisões e destruindo vidas, matando para não serem desmascarados, denunciados; falsos ideólogos, falsos religiosos são acobertados pelos sistemas.

Aparentar ser o que não se é e não ser o que se é, é constante na atitude hipócrita. Negociações e compromissos enriquecem o dia-a-dia destes seres.

Se desmonta a hipocrisia quando se questiona mentiras e traições, tanto quanto para montá-la é suficiente realizar sintonia com conveniências e inconveniências. As conivências, os ajustes, as associações, alianças e negociações com demandas desleais, mesmo que aparentemente inócuas, criam espaço para construir o empoderamento baseado em hipocrisia. Quando qualquer situação é transformada em sistema, a autonomia individual desaparece nas múltiplas e intrincadas leis que o formam. Quem aperta o botão pode ser o salvador ou o vilão. Ambos podem estar preparando mentiras e traições através de despistes e programas enganosos.

O hipócrita gosta sempre de ser o cavaleiro das boas novas; o disfarce exige amplos espaços para ser construído e permitir realização. As instituições, com seus poderes, podem abrigá-lo satisfatoriamente; grandes causas, propósitos humanitários utilizados e advogados em função dos próprios desejos e não aceitações, abrigam, escondem e revelam hipócritas.

Ao nos determos na atitude hipócrita, entendemos por que os antigos falavam que quem mente rouba e ainda, quem rouba mata. Radicalismo exagerado, mas, que apreende a configuração geradora da hipocrisia: disfarce de mentiras e traições para atingir resultados considerados necessários e fundamentais ao seu bem-estar, seja roubando, fingindo ou "queimando arquivos", vidas que podem denunciar seus crimes. A hipocrisia exercida pelo "dentro da lei" é também um de seus aspectos mais desumanizadores. Forjar situações, é a maneira de transformar mentira e traição em lei e direito, conseguindo-se assim, vantagens e concessões.

No âmbito psicológico, o hipócrita é o despersonalizado, o sobrevivente siderado pela realização de metas abolidoras de suas não aceitações; o problema começa ao se dividir entre o que vai trazer-lhe vantagens e o que o derrota. Ele se sente derrubado, mas também se sente um vencedor ao conseguir trilhar por um caminho que o levará a esconder e neutralizar suas não aceitações sociais, econômicas, biológicas, familiares. Dividido, parcializado, não fica em pé - arrasta-se para sobreviver e realizar seus desejos, mas sabe que só o consegue, disfarçando as mentiras e traições feitas, realizando sua cissiparidade. Ambiguidade, inconsistência são suas permanentes atitudes; esta hipocrisia (aparência, flexibilidade e adaptação) destrói lares, amizades, infiltra-se no trabalho, nas agremiações e se perde na contingência.
















- "Heidegger e o nazismo" de Victor Farias
- "Le Tartuffe" de Molière


verafelicidade@gmail.com

Comentários

  1. Me lembrou a Ópera dos Três Vinténs, de Brecht, que mostra no final das contas que a lei é usada para atender os interesses dos fora-da-lei e para explorar os ignorantes da lei.

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