Formação de identidade

Formação de indentidade é um processo decorrente do relacionamento com o outro em um determinado contexto cultural, social, histórico.

Todo conhecimento é perceptivo, é relacional, este processo identifica o humano, permite dizer que ele é constituido pelo outro enquanto ser no mundo.

Frequentemente o que se chama identidade se refere às características culturais e sociais. O fazer parte da cultura X, Y ou Z, o estar inserido em determinados grupos sociais,  estar inserido em determinada classe econômica, determinam oportunidades, impedem satisfação de necessidades tais como a de comer nutritivamente, por exemplo. Surgem os pobres, os ricos, os remediados e medianos, as minorias etc. O acesso à educação é também outro fator usado como identificador.

Nenhuma destas dimensões açambarcam, identificam o humano. A impossibilidade de identificação se faz sentir quando nos deparamos com as pulverizações do conceito de identidade: identidade étnica, identidade cultural, identidade sexual, identidade religiosa etc.

Sociedade, Estado geralmente estão voltados para manutenção da sobrevivência de seus membros. Sobrevive-se e este processo despersonaliza pela opressão tanto quanto pelo apoio. Os homens reduzidos a suas necessidades, transformam-se em massa de manobra social. Oprimidos e apoiados pelas instituições, realizam suas "vocações" buscam melhorar, lutando e sonhando com mundos e sociedades melhores.

Sociedade e cultura não são estruturantes do humano, são estruturantes de relacionamentos que humanizam ou desumanizam, que reduzem os homens à sobrevivência, à satisfação de suas necessidades ou que permitem realização de suas possibilidades.

Limites geralmente representados pelo poder exercido por minorias sobre maiorias escravizaram e escravizam o ser humano. A transformação de seres humanos em mercadoria - antigamente o tráfico negreiro (escravidão) e agora a venda das ditas "escravas brancas" para os bordéis - é um aspecto deste poder destruidor, sinonimizado com ordem econômica ou lucro não importa como.

Cultura e sociedade são sempre estabelecidas sobre hierarquias e interesses econômicos. O homem encarcerado em sua cultura, sua sociedade, sua profissão, seus grupos, suas instituições é um ser posicionado. Agrupa-se, filia-se, satisfaz necessidades e sonha com a realização de desejos impossíveis; estas metas o transformam em massa de manobra, seus sonhos, tais como "ter um carro", "viajar", "comprar um imóvel" são manipulados e administrados pelas instituições sociais, ficando assim, acorrentado a tudo que o limita em função do que deseja.

O homem é o retrato de sua época se as contingências enquanto satisfação de necessidades são consideradas (nível de sobrevivência), e ele independe de suas molduras culturais e sociais, ele continua o mesmo em todas as épocas se forem consideradas suas possibilidades de relacionamento com o outro (nível existencial).



- "O Navio Negreiro", Marcus Rediker
- "Principles of Topological Psychology", Kurt Lewin
- "L' Homme Nu", Claude Levi-Strauss

verafelicidade@gmail.com


Comentários

  1. Vera, que texto bonito! Em poucas palavras você abriu mil portas...

    Quando penso no que você diz sobre a imanência humana ser a possibilidade de relacionamento, vejo como é dinâmico e intenso estar viva, sinto de imediato uma liberdade, uma certeza de propósito, sentido.

    É uma dádiva esse poder que foi dado ao Homem de ver o mundo e as pessoas através de sua beleza, não apenas pela utilidade. É um presente a possibilidade de fazer ou deixar de fazer alguma coisa por valores e princípios e não apenas para aplacar necessidades. É aí que mora a liberdade.

    Outro dia eu estava brincando com meu gato e joguei pra ele um origami que tinha feito. Era muito bonito, colorido, uma borboleta, as dobras eram perfeitas e nas pontas a cor do papel mudava de tom. Joguei o origami para o gato e ele saiu correndo e brincando com o papel. Pensei que o gato nunca veria o que eu vi, ele nunca entenderia a diferença entre aquele origami e uma bola de papel. Nesse dia pensei na maravilha que é ser gente. Ao mesmo tempo me envergonhei de ver o mundo se abrir em mil portas (como agora lendo seu texto) e me encontrar satisfeita com duas ou três, querendo garanti-las a qualquer custo, e vendendo a alma pra mantê-las...

    Eu fico muito feliz de ler seus textos. Eles me tocam profundamente.

    Beijos.

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  2. O que a Natasha escreveu remete a ver o novo, estar disponível para o momento que está acontecendo, como as crianças fazem com bem mais frequência que adultos. Muito abrangente seu texto Vera. Penso nesse tema amiúde e me pergunto de onde vem essa tendência da maioria pessoas agirem como agem. Pensei que os animais tem hierarquia, líderes, mando, em várias espécies se exploram uns aos outros e cometem crueldades. Nisso não estamos muito diferentes, ao que parece, exceto por um córtex mais desenvolvido, polegar opositor, e fala, que nos permitem realizações grau bem maior que o das deles, podendo mudar mesmo o clima do planeta. Por que a maioria só sobrevive …

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  3. Oi Vera seu texto é muito claro, explica claramente o vazio das pessoas, a ansiedade, raiva, violência, tudo isto ocorre porque esta dita "identidade" é baseadas em metas e toda meta esvazia, além disso são situações ancoradas no ter, obviamente sem individualidade, é isto ? Nunca me dei conta na minha vida inteira das questões meramente práticas, vazias destes padrões sociais atualmente tão valorizados como: a viagem dos meus sonhos, o carro dos meus sonhos, a casa dos meus sonhos, ou mesmo dos sonhos tão proclamado nas diversas mídias principalmente a televisiva.

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  4. É Rosélia, toda estruturação de identidade que é feita em função de padrões e resultados, desumaniza e esvazia; este esvaziamento é preenchido por sonhos como você falou.
    Abraço

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  5. Penso como, atualmente, a questão “quem sou?” está atravessada – e consequentemente dividida – por essas pulverizações do conceito de identidade. O tempo todo temos que preencher perfis, definir o que fazemos, onde estudamos, onde trabalhamos, do que gostamos, se somos vegetariano ou não, fumantes ou não fumantes, de esquerda ou de direita, brancos, negros, simpáticos ou não à causa gay, ateus ou religiosos, e por aí vai. Cada uma dessas definições funciona como filtro para o outro – o que pode nos levar a querer ser (aparentar) A ou B em função de como o outro vai nos olhar, até em função de como eu vou me olhar, se esse eu que sou é o eu que gostaria de ser. Assim, me faço mercadoria, sou visto como mercadoria pelo outro, vejo o outro como mercadoria (do nível mais sutil ao mais palpável).

    Quanto mais fracionado, mais vulnerável e manipulável (“Os homens reduzidos a suas necessidades transformam-se em massa de manobra social.”). Isso me faz lembrar o princípio “dividir para governar” do Apartheid. Mas, nesse caso, nós mesmos nos dividimos e nos colonizamos, ao nos fixarmos em posicionamentos, estabelecermos papeis e classificações para definir o que somos.

    O homem dividido, ao perceber o vazio em que se encontra, entra em crise e tenta juntar seus cacos, se perguntando “quem sou afinal?”. Se fosse possível, todos deveríamos fazer psicoterapia gestaltista... Não para juntar os cacos, mas para jogá-los fora e começar de hoje.

    Bem, essas foram algumas das coisas em que pensei ao ler seu texto, Vera.

    Seus textos todos tem-me feito cada vez mais bem, ainda que, às vezes, de um jeito bem dolorido.

    Abraço.

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  6. Clarissa, vejo que para você, "Padrões e costumizações" foi o contexto bem integrado por você para leitura de "Formação de Identidade"; muitas perguntas que você se colocava ficaram esclarecidas.

    "Quem sou?" esta base estruturada pelas possibilidades, sem dúvida, é apreendida na Psicoterapia Gestaltista. "Dividir para governar" é um tema que tenho pensado em desenvolver no blog.

    Seu comentário é ilustrativo de vários aspectos do "Formação de Identidade".

    Fico feliz em saber que os textos têm sido boa companhia na sua trajetória. Espero que cada vez eles esclareçam mais.

    Abraço

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  7. Que bom que estou conseguindo esclarecer algumas dúvidas, Vera. Dá mesmo para sentir como é bom.

    É, estruturar "quem sou" pelas possibilidades é um caminho desconhecido. Nem sei onde ele começa. Estou procurando, mas assim sem me fixar nisso. Posso dizer que ter uma vontade firme é diferente de ficar fixada em uma meta? A diferença estaria em que, no primeiro caso, é uma busca de mudança, enquanto no segundo pode ser apenas um deslocamento da não aceitação?

    Imagino que será um belo texto sobre "dividir para governar"! Não perco por nada =)

    Abraço.

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  8. Clarissa, ter uma "vontade firme" estar determinado à, pode ser uma meta. A diferença não é dada pelo fato do que se deseja ser bom ou ruim, ser estruturante ou não. O que não se tem ou o que se precisa ou o que se quer é uma decorrência do que se vivencia (perspectiva) ou é outro nível a ser atingido (meta). São as sutilezas relacionais e estruturais do ser humano que só em psicoterapia podem ser configuradas, globalizadas e resolvidas.

    Ver que existe outra maneira de perceber os próprios problemas é um questionamento que traz diferenças, início de antíteses, dinamização que pode também ser utilizada como desculpas e senhas para novas metas.

    Abraço

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  9. Oi, Vera,
    estava lendo agora o capítulo "Motivação" do "Questão do Ser..." e, ao ler sua resposta, lembrei desse parágrafo aqui...

    "Estar motivado em relação ao que eu desejo que aconteça implica transformar a motivação em um instrumento, uma alavanca, uma mediação para atingir o que se deseja, tanto quanto transforma o desejo no demiurgo criador de motivação. Esse círculo vicioso cria um limite, uma ilha habitada pelo indivíduo e seus desejos, esvaziado pela motivação. A motivação, no caso, é tão alienante quanto uma crença, ou uma droga, pois que não estrutura a dinâmica relacional, apenas possibilita deslocamentos. A motivação é o deslocamento, é o esvaziamento, é o álibi para existir."

    Sua resposta e o que está descrito acima se relacionam, não? O que importa então não é a "vontade firme", mas presentificar as vivências por meio da dinamização da percepção (puxa, eu tirei isso de seu livro, mas acho que não sei bem o que escrevi, rs.) Vou pensar sobre sua resposta, é melhor...

    Obrigada.

    Abraço.

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  10. Clarissa, se relacionam sim. Quando se cria condições para realizar o desejo, a motivação, a vontade, até mesmo a necessidade, começa a se estruturar caminhos para mudança.

    As vivências são sempre presentes mesmo quando é uma vivência anterior, ela se torna presente graças a memória.

    Abraço

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  11. Oi Vera! Estava aqui dando um repasso pelos seus artigos! Este, em especial, me fez lembrar de um artigo muito bom de um professor meu, Ignasi Terradas, um reconhecido antropólogo catalão. Mando o enlace para que você dê uma olhada, uma perspectiva antropólogica sobre o mesmo tema: a castração que as identificações políticas impõem sobre as vivencias individuais... Enfim, espero que goste!
    http://www.raco.cat/index.php/QuadernsICA/article/view/95585/165160

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  12. Oi Laila,

    Obrigada pela indicação da leitura.

    Li o Ignasi Terradas, gostei como comentários gerais e literários sobre identidade e cultura, mas não gosto à medida em que mistura Antropologia com Psicologia. A "identidade vivida", subjetiva, psicológica, tem forte ênfase na memória, como ele próprio diz, e usa isso literariamente.

    Acho também que ele reduziu as questões do conceito antropológico de identidade a situações específicas (imigração etc), ao mesmo tempo ele amplia demais o conceito de vivência, subjetividade. Tentou juntar situações normalmente enfocadas em áreas diferentes sem maiores justificativas. É essa hoje a tendência da Antropologia Urbana?

    Beijos

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