Manutenção do ritmo

As ordens estruturadas esvaziam o indivíduo caso não haja autonomia na apropriação das mesmas. Agarrar-se ao existente e seguir a corrente criada pelo mesmo, é traçar caminho, traçar esteiras mecanizadas pela obviedade. Instala-se o tédio e o despropósito. Isto cria tensões e quanto maior o acúmulo das mesmas, maior a necessidade de destruí-las. A destruição das tensões só acontece quando se atinge seus estruturantes, ou seja, quando questionamentos são feitos e comportamentos de mudança aparecem.

Estas simples transformações são difíceis, pois existem os comprometimentos e as vantagens que são inibidoras de ação, inibidoras de mudança. Quanto mais tempo se leva para transformar estes comprometimentos alienadores, mais se estabelece tensão, mais se estabelecem as ordens de conveniência que a mantém.

Neste desenrolar paradoxal o indivíduo utiliza escoamentos. Tudo que pode fazer esquecer a tensão serve para escoá-la. Mas, como esquecer a pressão constante do que tensiona? Criando envolvimentos atordoantes, que pelo barulho, pela percussão unívoca, tudo açambarcam. O repetir de situações, o executar mecanismos que caminham sozinhos (transtornos obsessivos - TOC) são exemplares. Para esquecer medos, dúvidas, apreensões, preocupações esmagadoras, a repetição funciona como amuleto. Anestesía-se para não ver, para não ouvir. Não pensar é também uma maneira de fugir dos estímulos tensionantes, das configurações familiares às demandas de trabalho. Bebidas frequentes, atividade sexual desenfreada, remédios, orações, participações comunitárias, jogos e outros prazeres conseguidos pela repetição, ocorrem enquanto sequências residuais, são os hábitos, vícios que deslocam a tensão.

Surpreendentemente, quanto mais se desloca tensões acumuladas, mais se estrutura ansiedade, pois é através da ansiedade - atitude prevalente, sequenciada e avassaladora - que são tecidas outras realidades fora do real tensionante. A ansiedade, sendo tecida do inefável, nada detém, nada modifica. Atividades construídas pela ansiedade podem neutralizar tensões, pois é próprio da ansiedade impedir concentração. Quanto mais se repete, menos concentração; as sequências viciantes andam sozinhas, não é necessário se concentrar e por isso não acumulam tensão.

Exatamente aí, nesta manutenção do ritmo, independente de concentração, de autonomia e motivação, é que o deslocamento de tensão é feito, tanto quanto seu processar deixa o indivíduo sem nada sob o ritmo de seu deslocamento, de sua ansiedade. Acontece que a ansiedade, para se manter, precisa de contornos e surge assim, a overdose: remédios, drogas, bebidas. Surge também o pânico, surge o “não consigo parar”, aparecem cortes, decisões abruptas para quebrar o ritmo ensurdecedor e manietador.


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