Impasses e conflitos

Para a psicoterapia gestaltista, neurose é um processo que se caracteriza pela não aceitação.

Os relacionamentos familiares trazem padrões sociais significativos de acertos, erros, coisas boas e coisas ruins. Os resultados alcançados são compilados, e comparados; as pessoas são elogiadas ou criticadas, rejeitadas ou aceitas, mas sempre dentro de padrões. Neste processo se estrutura a experiência da não aceitação enquanto individualidade ao mesmo tempo em que se estrutura a aceitação ou não aceitação enquanto acertos ou erros determinados pelos padrões. Assim estruturados não há aceitação como individualidade, mas sim como indivíduos que acertam ou que erram. A pessoa não se sente aceita pelo que é mas sim pelo que pode ou não conseguir e consequentemente, não se aceita mas quer ser aceita. Para conseguir tal incoerência - não se aceitar e querer ser aceita - ela tem que camuflar o que não aceita em si, enganar, esconder, mentir, ousar e tentar. Neste jogo surgem sintomas, posicionamentos, inseguranças, medos, angustias, ansiedades.

A ansiedade desorganiza tudo. Dessa desorganização resulta a fragmentação, o aparecimento de partes descontínuas, posicionadas e apoiadas. Divisões, pontualizações, falta de sequência, dificuldade de dar continuidade às ações, criam paradoxo, incongruências relacionais: o indivíduo apoia-se no que oprime, conserva o que destroi etc.

Com o passar do tempo aparecem os conflitos que não são vivenciados como tal, mas que esmagam e pressionam, gerando pânico, vazio, insegurança. Não se sabe o que fazer da vida.

Em psicoterapia, quando as máscaras, os disfarces da não aceitação são denunciados, o individuo se sente ameaçado. Arrancar a máscara é vivenciado como arrancar a própria pele. Ele resiste, desiste, até que percebe que não arrancar a máscara é imobilizar-se e desistir de viver.

Este impasse entre querer continuar no processo da não aceitação e sentir-se imobilizado por ele, esta percepção das implicações, é o que possibilita a continuidade. Os pontos começam a ter sequência, o movimento começa a se estabelecer. É a mudança, é o movimento, é a transcendência dos limites até então responsáveis por medos (omissão), submissão, raiva. O processo de aceitar que não se aceita se inicia. Esta aceitação é fundamental para quebrar os posicionamentos, para mudar o autorreferenciamento, para recontextualizar os impasses e conflitos.




"Crime e Castigo" - F. Dostoievski

verafelicidade@gmail.com

Comentários

  1. Vera,
    mergulhada no seu texto de hoje, sinto exatamente isto:
    -uma compreensão do que você fala;
    -uma tristeza ao entender como isso da máscara ser como pele é forte e está tão presente;
    -e uma alegria por perceber, mais uma vez, que não precisa ser assim e que toda Beleza está em se aceitar.
    ...
    Eu acho que cresci um pouco, mesmo sozinha, nessas férias.

    beijos. Natasha.

    PS: você viu o filme A Árvore da Vida? Eu adorei o filme. Lembrei-me de você na hora que um dos personagens fala: "There are two ways through Life. The way of Nature and the way of Grace. You have to choose which one you follow."

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  2. Nossa, esse texto me fez lembrar imediatamente de Dogville! Vou até ver o filme novamente.

    Vera, estou adorando os livros. Tomando uma surra deles, claro, mas gostando muito! Abraço.

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  3. Estimada Vera, lendo seu artigo, como sempre de uma objetividade e poder de síntese invulgares, me veio um entendimento de como algumas pessoas podem transcender e chegar a uma universalidade humana. Em linguagem bem diferente da sua Karen Horney em 1937 no livro A Personalidade Neurótica do Nosso Tempo disse coisas essencialmente semelhantes às que você disse – acho que ela enxergou bem além da psicanálise então, por que falou do não cumprimento com regras e padrões como fatores geradores de rejeição (não-aceitação) e neurose. Segundo você esta última é a não aceitação da não-aceitação, conceito com o qual concordo plenamente. Alice Miller (O Drama da Criança Bem Dotada) também mostra que a família, como mediadora da ação do ser no mundo, pode ser extremamente desumanizadora e que “o mal”, tal como “o bem” se transmitem de pais para filhos.
    Parece que o conhecido cria uma ilusão de segurança, ou que motivo tem a pessoa para querer continuar na não-aceitação? Não perceber onde se encontra por auto-referência, uma espécie de cegueira perceptiva?
    Interessante que é a possibilidade desse olhar honesto que permite perceber a dicotomia entre querer continuar na mesma e ter a vida parada, estagnada, que você descreve. Claro que a terapia pode permitir esse insight. De que outra maneira ele pode acontecer?

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  4. Oi Natasha, que bom que você gostou do artigo e que o mesmo lhe possibilitou pensamentos, reflexōes. Não vi o filme "A árvore da vida". Escolha é um processo que as vezes divide mais do que unifica, depende de como e quando ele ocorre. Bjs. Vera

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  5. Oi Clarissa, que bom que você está gostando dos livros. Como tudo, o processo é sempre dinâmico, daí que tudo vai depender das atitudes, dos questionamentos. Abs. Vera

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  6. Que bom lhe ler novamente, Augusto! Os fatos, os problemas são sempre iguais, as explicaçōes dos mesmos é que divergem. Antes (e talvez ainda hoje) se falava em pecado original e Lombroso explicava tudo pelo "facies", pela forma do crânio. Precisamos configurar e globalizar o humano para que o homem seja sempre uma totalidade diferente da soma de suas partes. A psicoterapia, por antítese e questionamento, provoca as mudanças, tanto quanto a aceitação e a disponibilidade estruturantes do amor, relacionamento sem divisões, podem também gerar mudanças. No meu proximo artigo creio que suas perguntas ficarão respondidas.

    Abs. Vera

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  7. Vera,
    o que eu gostei nessas palavras do filme e lembrei de voce é que eu acho que realmente se pode viver da forma da Natureza, que no filme é mostrada como a necessidade de sobreviver, a lei do mais forme; e da forma da Graça, como contemplação. Eu entendo isso que voce fala sobre a escolha, e talvez essa última frase do diálogo do filme nem seja muito legal, afinal não se escolhe entre viver de um modo ou de outro, pq os dois modos são parte de um mesmo momento, de um mesmo processo, não há como se viver a Graça se a Natureza não estiver satisfeita e viver apenas a Natureza é sobreviver e não realizar o humano... então realmente nao é uma questão de escolha... É, entao retiro o q disse inicialmente sobre poder viver de um modo ou de outro, ou é tudo ou é nada... Será que faz sentido? rssss... beijos.

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  8. Agora sim, Natasha! Nada como antíteses, comentários reestruturadores, ainda mais quando o outro, no caso você, está atento e disponível aos questionamentos. Bjs. Vera

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  9. rrsss... tá bem, Dom Quixote. até breve!

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  10. Oi Vera adorei todos os últimos artigos, mais este último para min é maravilhoso, mostra o quanto as relações familiares podem ser marcantes no aspecto negativo também, entretanto existe uma forte apologia na manutenção desta estrutura, um bom exemplo desta situação podemos ver no filme Melancolia, beijos Rosélia.

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  11. Oi Roselia, sentia falta de seus comentarios. Bem correto todo seu resumo das situacoes que temos que ultrapassar para realizar nossa humanidade. Beijos. Vera

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  12. Vera, Clarissa, Natasha, Rosélia,
    Não vi Dogville nem Melancolia. Vi A Vida dos Outros que retrata o drama de pessoas no sistema de regras rígidas da Alemanha Comunista. Um agente do partido comunista percebe gradualmente a falsidade da ideologia, governantes obcecados pelo poder e pela satisfação dos seus desejos, que destruíam ou afastavam quem quer que se interpusesse no caminho. É magistral quando retrata o que acontece intimamente na percepção de um homem que aos poucos perde a fé nos valores em que acreditava e cai no vazio, encara a essência do ser, 'muda de lado'. Mostra o extraordinário - a tomada de consciência, a humanização, a transcendência às regras impostas. Constitui-se, em última análise, num ensaio sobre as relações de poder em situações de arbítrio e autoritarismo e mudança na forma de perceber a realidade, o que a Vera falou no artigo anterior e no acima.

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  13. Já que tivemos uma digressão cinematográfica, mas sem perder a unidade temática do profundamente elucidativo artigo da Vera, o filme Match Point dirigido por Woody Allen é baseado no livro Crime e Castigo, de Dostoiévski mostrado acima.

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  14. Augusto, "A vida dos outros" é lindo demais! Olha, na minha opinião, você não deve deixar de ver "Dogville" nem "Melancolia", viu? Não vai se arrepender. Abraço.

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  15. Ok Clarissa, grato.

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  16. Augusto, o filme "A vida dos outros" é excelente, muito bem lembrado. Acompanhar o processo de mudança de ponto de vista do personagem é fantástico. O mais bacana é que a mudança só foi possível pois ele, no início, realmente acreditava na ideologia pela qual lutava, não era um hipócrita. Depois ele vive o conflito e encontra a resposta.
    Clarissa falou de "Melancolia". Assisti duas vezes. Na primeira me senti tocada, mas não entendi bem. Na segunda, depois de já ter conversado e pensado a respeito, fiquei verdadeiramente encantada.
    Abraços.

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  17. Oi cinéfilos queridos,
    A Vida dos Outros, Melancolia, Dogville são perfeitos para exemplificar um dos conceitos fundamentais da Psicoterapia Gestaltista: muda a percepção, muda o comportamento; às vezes os problemas continuam porque toda mudança pode possibilitar novas mudanças ou novos posicionamentos. Todo relacionamento gera posicionamentos geradores de novos relacionamentos e assim infinitamente. Lembram do meu IV livro - Relacionamento Trajetória do Humano? Beijos. Vera

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  18. Vera porque você diz " às vezes os problemas continuam porque toda mudança pode possibilitar novas mudanças ou novos posicionamentos" ?

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  19. Rosélia, os problemas continuam se a dinâmica é quebrada pelo posicionamento, a dinâmica continua na sequência, movimentos e interações. O que eu escrevi antes foram as duas situaçōes. O importante é entender que todo relacionamento gera posicionamentos geradores de novos relacionamnetos infinitamente. Bjs. Vera

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