A vontade de dar certo é um erro

Só se pretende um futuro diferente do presente, quando não se aceita o que se está vivendo. Partindo de uma incoerência, desejando o que não está estruturado em seu presente, chega-se ao desacerto. Ninguém, satisfeito em estar vivo, deseja morrer (futuro), por exemplo. Vivenciar o presente integralmente não deixa brechas para avaliar. Só em vivências parcializadas é que surge a comparação, a avaliação. Esta divisão estabelece o bom, o ruim, o satisfatório, o insatisfatório; cria inveja, ganância, medo, insegurança. A continuidade é quebrada e classificações e tipificações aparecem.

Querer dar certo é pensar em resultados, é vivenciar o presente como ponte para atingir metas.

Evitar o que se considera prejudicial e insatisfatório demanda estratégias e esforços e assim se começa a construir metas que, quando realizadas, geram vazio. Para validar e justificar os esforços, busca-se a todo custo, manter o conseguido.

Frequentemente obstinação, compulsão, medo, aumento da necessidade de ser considerado, vontade de acertar são mantidas para corrigir o considerado erro de apenas existir e de não encontrar significado nisto.

Estes seres obstinados, cheios de propósitos, estão dedicados à suprir suas necessidades e/ou a dos que estão à sua volta. São os baluartes do sistema, os apegados a suas rotinas, a seus vícios, tanto quanto são os obstáculos a tudo que é espontâneo, instantâneo, desvinculado de referenciais. O drogado é também um mantenedor do sistema. Viver em função de seus vícios é ser obstinado, é se consagrar ao seu prazer-alívio e sobreviver dependendo de escoras familiares ou sociais.

Para o obstinado nada pode ser apenas o que é; para ele não existe nada gratuito - tudo tem preço: ele passou a vida pagando. Para ele, se não tem preço, não vale, não significa. O preço etiquetado, o valor é o determinante da motivação, da vontade. Para eles a realização, o prazer é um tesouro escondido, consequentemente tem que se descobrir o mapa da mina, tem que conseguir acertar.
















- "Os Sonâmbulos", Hermann Brock
- "O Valor de Nada", Raj Patel


verafelicidade@gmail.com

Comentários

  1. Patriciaimbassahy@gmail.com20 de outubro de 2011 às 10:20

    Como é bom ler o que vc escreve! Adorei a sugestão de "O valor de nada" . Como trabalho com crianças pequenas, fiquei pensando o quão duro é para elas, toda a obstinação dos adultos e a impossibilidade destes poderem simplesmente brincar, sem um propósito, rir, escutar o choro, ficar agarradinho ... E dormir e acordar e se espreguiçar. Beijo e obrigada pelo NADA

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  2. Obrigada a você Patrícia, que como educadora pode apreciar como o agir sem metas abre perspectivas, amplia espaços, gera conduta exploratória.
    Beijos

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  3. Vera querida,sua lucidez é alucinante!!!Obrigada pelo chacoalhão!!!beijos

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  4. Cecilia que bom! Despertar é sempre renovador.
    Beijos,
    Vera

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  5. Obrigada Ana, a questão é que pensamento é prolongamento da percepção. Racional ou o diferente disso ainda são dualismos. Razão como dado ou produto mental é outra divisão; se você pensar que tudo é percepção, o mundo muda. Sei que você, com certeza, vai apreender o que estou falando sobre a unificação de mais este dualismo.
    Abraço,
    Vera

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  6. Gosto do seu jeito de escrever e expor os fatos. Sempre visito seu blog. Adicionei aos meus favoritos. Sou professora da área de Letras, mas a-do-ro a Psicologia. Seus textos me encantam. Fico curtindo os posts e esperando pelo próximo. bjs. Lu

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  7. Vera, Muito esclarecedor o artigo e bom tudo que está escrito nesses comentários. Acho que a Ana tocou em um ponto que também me encanta. Me lembrei de uma música do Teixeira, o Maior Mistério, que diz:
    O maior mistério é haver mistérios
    Ai de mim, senhora natureza humana
    Olhar as coisas como são, quem dera
    E apreciar o simples que de tudo emana
    Nem tanto pelo encanto da palavra
    Mas pela beleza de se ter a fala

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  8. Que bom, Lu. Que você continue lendo e gostando, bjs,Vera

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  9. Olá Vera, você é um gênio, em todos os sentidos da palavra até no mágico... rs. Eu realmente costumo opor 'razāo' e 'intuiçāo' como métodos, meios de conhecimento; mas como você diz, tudo é percepçāo e mais, você afirma que perceber é conhecer! Meios e fins se unem. É mesmo um outro mundo esse "seu" mundo inteiro. Genial.
    Abraço

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  10. Ana você sempre traz categorias novas, intuiçāo por exemplo, e sempre me surpreende quando consegue ver que o diferente é igual. Achei incrível quando você abandona sua certeza da intuiçāo pela evidência da percepçāo.
    Abraço

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  11. Bom dia, Vera! Já li algumas vezes o artigo e os comentários, que são um plus. Se só tivesse lido esse artigo e nada mais seu na vida, já me faria uma revolução.

    Uma frase em especial me pegou pelo pé: “Frequentemente obstinação, compulsão, medo, aumento da necessidade de ser considerado, vontade de acertar são mantidas para corrigir o considerado erro de apenas existir e de não encontrar significado nisto.”

    A busca por significado... Parece que, se não houver um significado, não há razão para estar vivo, a vida não é considerada digna. Mas não, né? Para viver não precisamos mesmo de razão. E passar a vida atrás de um significado é ser como um daqueles cães de corrida que vão atrás da lebre e dão voltas e voltas numa pista circular, sem fim. Daí, em busca de viver a vida, ficamos alheios a ela. Hoje você me mostrou mais uma de minhas lebres.

    Obrigada! Abraços.

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  12. Boa noite Clarissa, o significado do humano é imanente ao ser humano; nāo perceber isto no próprio fato de existir e buscar atingir situações significativas, boas e valorizadas é que é o problema. No livro Terra e Ouro sāo Iguais explico bem toda esta questāo. 

    Que bom q meus textos têm lhe possibilitado insights, descobertas e revoluções. Gostei da história da lebre.

    Abraço

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  13. Que incrível! A flor não procura sua essência ou seu significado para viver plenamente como flor, ela apenas vive a flor que já é, que nasceu sendo! Se somos humanos, nosso significado, o significado de nossa vida já está aqui... Se não estivesse, seríamos macaco, pedra, jabuti, cotia, menos humanos! Por isso, ir atrás de um significado que supostamente nos completa desumaniza, nos esvazia do que já somos... É nadar contra a corrente, deixamos de viver o que somos para viver a ilusão do que nunca seremos. É mais ou menos isso?

    Ainda não cheguei no Terra e Ouro, mas vou prestar atenção a isso quando ler.

    Obrigada, Vera!
    Abraço.

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  14. É isso mesmo Clarissa, "macaco, pedra, jabuti, cotia"... ou lebre... rs. O ser é a possibilidade de relacionamento, isto é tudo; quando as necessidades são transcendidas, o q não significa superadas ou satisfeitas, estrutura-se o nível existencial.
    Abraços

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  15. ...ou lebre, rss.

    Obrigada pela resposta, Vera.

    Abraço.

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  16. Vera,

    Sábado li seu livro “Relacionamento – Trajetória do Humano”. Apesar de saber que não compreendo tudo o que você diz, não consigo apreender o sutil que conecta tudo e que possibilitaria o grande pulo do gato, sinto que consigo voos rasos e me pego com um frio na barriga de emoção por perceber algo novo, lindo e que faz tanto sentido que me espanto. Senti uma alegria enorme de ter acesso àquelas páginas, de saber que alguém pensou tudo aquilo, de conhecer quem pensou tudo aquilo.

    Desde a primeira página, com aquela citação linda que fala algo sobre não desesperar, pois o aclive que grimpas é tão íngreme quanto tu próprio visto de baixo, fiquei encantada.

    Fui fisgada pelo capítulo que fala de disponibilidade. Achei incrível você pensar que as relações justapostas são como fenômenos físicos, que não transformam e relações onde há disponibilidade são como fenômenos químicos, que alteram a estrutura dos corpos. Também me pegou de jeito o fim do capítulo que fala que quanto mais a pessoa avalia, menos ela está disponível, menos dedicação. Somos educados para pensar que avaliação, ponderação de variáveis, manter o bom e descartar o ruim são atitudes sensatas, esperadas da pessoa inteligente. É difícil entender o vazio que há nisso, as tais das ilhas de solidão que essa atitude cria. Quando li que disponibilidade é fé, esperança no mundo, no outro, em si, eu entendi, vi, senti. Tive vontade de chorar... Lembrei logo do poema: (...) Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes. (...) Fernando Pessoa falava de disponibilidade. É o que faz a pessoa inteira, alta...

    O livro todo é uma joia. A ideia de escolha como encontro, a quebra do dualismo ilusão/realidade, a importância da dúvida como dinamizador do estar-no-mundo-com-o-outro (poderia dizer isso? Rss... Não sei...) e não como sinônimo de insegurança/incerteza; enfim, todas essas ideias são fascinantes!

    Os obstinados e cheios de propósito de que você fala no texto que estou comentando, me identifico tanto com eles, sou um deles. Isso me entristece, envergonha... Tantas vezes percebo a beleza das coisas, vejo a maravilha que é estar viva e ter o mundo todo como possibilidade; entrego-me ao presente, sou feliz nesses pequenos momentos. Mas é como se isso não bastasse, falta continuidade, é como se eu não fosse forte o bastante pra ser disponível sempre, pra confiar e mesmo me esborrachando, seguir em frente...

    beijos.

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  17. Natasha, bons seus comentários à medida em que implicam em questionamentos, constatações e perspectivas. São muito dinamizadoras essas vivências quando nos detemos nelas.
    Beijos

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