Padrões e costumizações

Outro dia, lendo Proust - Jean Santeuil* - achei engraçado o que ele escreveu sobre Sarah Bernhardt, a famosa atriz de teatro do sec. XIX, ele dizia:  "... assim como todo amador apaixonado pelo talento de Sarah Bernhardt sentiria diminuir sua paixão no dia em que, mesmo que continuasse grande artista, Sarah Bernhardt já não falasse mais com os dentes cerrados, sempre rindo, bem depressa, sem que se entenda bem o que diz..."

No tempo de Sarah Bernhardt era possível se apresentar fora dos padrões, era possível expressar seus próprios hábitos. As idiossincrasias eram aceitáveis e identificadoras. O "politicamente correto" não era o determinante. 

Atualmente, para se apresentar seja na festinha do amigo, na repartição pública, na empresa, no palanque ou na TV, para ser aceitável é preciso preencher algumas regras, atender alguns padrões. Além do "sorriso branco total" comum à todas as celebridades do mundo do entretenimento, de políticos, de jogadores de futebol etc uma série de ítens devem ser preenchidos: saber como se comportar, seguir as regras das boas maneiras, usar o que está na moda etc. A mesmice, a cópia são de tal ordem que surgiu o novo padrão:  costumizar. Costumizar tudo, do sorvete às camisetas e assim tem-se a impressão de estar interagindo de maneira individualizada e única quando na verdade apenas se manipula meia duzia de variáveis padronizadas.

No universo do consumo, ao se buscar manter aparências valorizadas para ser aceito, se cria a expectativa de seguir, de imitar. O novo é o que faz igual, inovar é copiar, é costumizar. Costumizar não passa de apoderar-se de sugestões, reciclá-las e apresentá-las como próprias.

A manutenção desta atitude de apropriação e cópia cria esvaziamento, despersonaliza. Não se sabe quem se é, mas se sabe com que celebridade se quer parecer ou se acha parecido; assim se torna necessário buscar símbolos que o identifique.

As leituras dos manuais de auto-ajuda, tanto quanto o deciframento de seus mistérios, de seus arcanos, de seus portais mágicos é uma regra. É este processo de constante alienação, de coisificação que requer regras, padrões gerais e costumizações específicas. Neste contexto das costumizações, Sarah Bernhardt só seria ela própria se estivesse vestida conforme seu 'affiche' ícone.

* "Jean Santeuil" de Marcel Proust - Editora Nova Fronteira, pag. 520





 verafelicidade@gmail.com

Comentários

  1. Olá Vera, muito interessante a maneira como você desenvolveu este artigo, iniciando com um exemplo do 'mundo das artes', este mundo que sempre se caracterizou por fazer a diferença, por permitir o inusitado, o experimental, o 'fora da ordem', o louco, o vanguardista, o belo, o feio, o virtuoso, o obsceno, "Deus e o Diabo"... não só permitir, mas desejá-los a todos; as artes, desde o início dos tempos, sempre foram associadas a palavras como 'liberdade', 'rebeldia', 'criatividade'... e para mim tudo isto sempre remeteu ao indivíduo e seu caráter de ser único.

    Você magistralmente resumiu este nosso tempo estéril, homogêneo que vem atingindo até o 'mundo das artes'. E fica difícil para o artista que resiste a esse processo, se manter atuante por que ele precisa ser reconhecido pela platéia. Acho até que fica um pouco mais fácil para nós "pobres mortais" enfrentarmos estes questionamentos através de alertas como o seu, do que para os artistas. Ando meio pessimista quanto a esta questão, parece que tudo que se 'produz' não passa de 'mercadoria'. Como você diz, é impossível hoje em dia uma Sarah Berhnardt, um van Gogh, um Tolstói...

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  2. Ana, eu não tinha pensado especificamente na questão dos artistas, bem lembrado.

    O artista era o "outsider", hoje em dia, às vezes é o "insider" que "sampleia".

    Ir além do padrão (não basta ser artista), deixar de ser "coisa" ou de ser alienado, só é possível com questionamento, sem acomodação - ajustes aos padrões.

    Beijos

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  3. Obrigada pela resposta, Vera, como sempre, no ponto:

    "Ir além do padrão (não basta ser artista), deixar de ser "coisa" ou de ser alienado, só é possível com questionamento, sem acomodação - ajustes aos padrões."

    Suas frases são verdadeiros dínamos mentais.

    Beijos

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  4. Olá Vera,
    Seu artigo descreve o que percebo há tempos na dimensão dos indivíduos e da sociedade.
    Claro que ao longo da história sempre existiram modismos e regras culturais, mas eram circunscritos a regiões – as perucas empoadas e punhos de renda na Europa, enquanto no Japão se usavam quimonos e os nativos americanos usavam roupas e tinham hábitos completamente diversos. Hoje com a globalização dos meios de comunicação e da economia a cultura de massa ganhou momento e está permeando a humanidade.
    O attire homogêneo dos jovens é calças arriadas mostrando o underwear tanto aqui, quanto na Europa, nos Estados Unidos e na Ásia. A customização está ligada diretamente a resultados financeiros – empobrecer as opções básicas (custos baixos) e fazer combinações delas para oferecer ao cliente, com aparência de diversidade (lucros altos). Assim aconteceu com companhias aéreas, que usam ‘hubs’ onde concentram a grande maioria dos voos em detrimento dos usuários e, muito pior, na área de alimentos hoje há cinco commodities básicas dominando toda a produção global, quando haviam dezenas e dezenas no início do século 20 em produção local, para as populações locais. Essa ação visa mercantilizar todas as relações, como se o aspecto monetário e utilitarista fosse o centro da vida. Apoiado em um discurso absolutamente falso, esse sistema produtivo está causando o que se chama em biologia de erosão genética (via homogeneização da produção, transgênicos, etc.), em economia concentração econômica, em termos sociais mais pobreza e fome no mundo. Em termos de vida psicológica, o que você descreveu com nitidez.
    Não vejo esse aspecto socioeconômico utilitarista seccionado da alienação individual, por que essa influência das grandes empresas e do sistema financeiro na sociedade cria opressão e uma cultura de massa alienante incutida nas mentes via meios de comunicação, os big brother da vida, etc. Ao contrário, acredito que estejam intimamente relacionados. Lembrei da frase que diz: “todos nascem um original e morrem uma cópia”.
    Ter uma ação e expressão autônoma com relação a tudo isso, na dimensão do indivíduo, não se consegue com minutos de sabedoria, lendo Paulo Coelho ou frequentando vivências, fazendo renascimento, constelações familiares e coisas do tipo.
    Abraço

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  5. Ana,
    Obrigada, bom saber da dinamização propiciada pelo artigo.
    abraço

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  6. Augusto, bons os seus exemplos sobre costumização; claro que tudo está relacionado, é o contexto.  Paulo Coelho e Cinco Minutos de Sabedoria, como alívio, busca de mudança, citados por você, também são padrões, é um dos aspectos costumizados da auto-ajuda, falados por mim.
    Abraço 
    Vera

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  7. Oi, Vera,
    o que me chamou atenção em seu texto foi o que entendi como o padrão que surge da necessidade de estar fora do padrão ["Costumizar tudo, do sorvete às camisetas e assim tem-se a impressão de estar interagindo de maneira individualizada e única quando na verdade apenas se manipula meia dúzia de variáveis padronizadas."]

    Quero dizer com isso que, diante da óbvia massificação, que pode ser caracterizada pelo “sorriso branco total”, por exemplo, muitos tentamos não ficar escravos desses padrões. Acontece que, como o problema não está no padrão, mas no que nos faz buscá-los – como a busca por aceitação –, no fim das contas o que fazemos é tentar aplacar nossos vazios, buscar a aceitação do outro por outros meios. Então há uma espécie de “moda paralela”, baseada na customização, que consiste em ir supostamente na contramão da massificação vigente. Mas fugir à regra é também uma regra que massifica no longo prazo, se o que nos motiva é parecer alguma coisa.

    Na verdade, penso que o que nos aprisiona é tanto a busca por ser igual – que estrutura a cultura massificada –, como a busca por não ser igual – que configura o dito “diferente”. O que me salta aos olhos nesses movimentos todos é o que você tanto fala: a não aceitação e suas consequências. Abraços.

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  8. Perfeito Clarissa, mas com relação a seguir padrões, sejam eles quais forem, mais importante do que considerar a estrutura da não aceitação é considerar o deslocamento da mesma sob a forma de metas de ser aceito, nas suas mais diversas formas, como: querer parecer respeitável, inteligente, marginal, "louco" etc é o deslocamento da não aceitação onde além de ter, é necessário parecer (tem um artigo neste blog sobre a questão da aparencia, onde escrevo: "A sociedade atual ampliou a idéia de que é possível conseguir o que se quiser e tudo está ao alcance, de que não existem mais estigmas, não existem diferenças, não existem limites. O grande shopping está aberto, o mercado se amplia. Se nos anos 70 o conflito era entre ser e ter, agora é entre ser e parecer. A divisão atual é basicamente entre o que é e o que parece ser; é o século dos reparos, das próteses, da construção de imagens. Tudo isto serve para alimentar ansiedades e depressões, tanto quanto para vender seus antídotos." -"Ansiedade", 4 de Julho 2011)
    Abraço

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  9. Vera, seu texto e a discussão acima me fez outra vez lembrar Karen Horney a qual, em 1937, já expunha um pensamento que em grande parte corrobora suas palavras, de que "... Outra contradição é a que existe entre a alegada liberdade do indivíduo e suas limitações reais. O indivíduo, segundo lhe diz a sociedade, é livre e independente, e pode decidir sua vida e acordo com seu livre arbítrio; o grande jogo da vida está aberto para ele e pode conseguir o que quiser se for eficiente e ativo. Na verdade, para a maior parte das pessoas todas essas possibilidades são limitadas. ... O resultado é que indivíduo titubeia entre um sentimento de poder ilimitado para determinar sua própria sorte e o de incapacidade total."

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  10. Não Augusto, eu e Karen Horney não dizemos as mesmas coisas. Se os temas são iguais, as fundamentações epistemológicas são diversas. Para mim não existe sociedade e indivíduo; existe o homem no mundo, uma gestalt; esta é a grande inovação da Psicoterapia Gestaltista. Separar o homem do mundo é dualista, falar de liberdade, escolha, livre arbítrio dentro desta divisão é tautológico e reducionista. Repetindo o que sempre falo: tudo o que se refere a indivíduo e sociedade, só pode ser entendido como uma relação. 
    Abraço

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  11. Claro Vera, não estou comparando, longe disso. É que eu gostei muito de Karen Horney quando li, a achei bem diferente de outros autores com fundamento psicanalítico bastante enfadonhos. Os fundamentos epistemológicos são diferentes, entendo isso ok? Mas os temas são os mesmos, como você disse. O que Horney percebeu, e expressou na linguagem dualista dela, foi questão da onipotência e da impotencia, da neurose resultante da impossibilidade de atingir objetivos acreditados como possíveis (nível de aspiração e de realidade) e da impossibilidade de alguns indivíduos cumprir com regras sociais e não serem aceitos, nem se aceitarem, por conta disso. Realmente, ela não globalizou como você, esteve muito aquém, mas já mudou o paradigma da época. Assim como De Saussire mudou a concepção de linguistica na época dele, cujos conceitos Austin e principalmente Griece, fundamentados na fenomenologia, definiram de forma muito mais integrada e avançada (implicatura de linguagem, etc.).
    É sempre bom dialogar com você.
    Abraço

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  12. Oi, Vera
    li sua resposta há dois dias, queria comentar o que vc escreveu, mas não consigo dizer nada. Reli o artigo que vc citou, "Ansiedade", que foi o primeiro que comentei quando conheci o blog. Lembro que ele me tocou mesmo, e ainda toca. Na primeira vez em que entrei aqui, li "Somatização ou descorporificação", fiquei intrigadissima e comecei a ler sem parar dos mais recentes aos mais antigos. Quando cheguei em Ansiedade, tive que comentar.

    Obrigada pela resposta. Estou lendo posts antigos, pois sempre descubro coisas novas. Beijos.

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  13. OK Clarissa, imagino que é um mundo novo que está aparecendo para você, sendo antítese a uma série de conceitos, certezas e crenças. Acho que isso é bom porque movimenta.
    Abraços

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  14. É novo sim e muito bom também, Vera, como vc falou. Bjs.

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