Interno e externo não existem
Interno e externo são apenas indicadores semelhantes a direita e esquerda quando indicamos direção. Sempre exigem uma referência a partir da qual são estabelecidos.
O uso frequente dos termos interno e externo transformou-se em metonímia, um filtro, uma lente pegajosa que atrapalha a percepção, a categorização do que é humano, do que é psicológico.
Freud, por exemplo, falava em "realidade externa" e a via como projeção do inconsciente. Para ele, esse processo de projeção era gerenciado, controlado pelo próprio inconsciente e caracterizava a natureza humana. Essa dicotomia foi tão divulgada e incorporada ao pensamento ocidental de maneira geral, que atualmente, qualquer coisa diferente disto pode até ser entendida e aceita, mas sempre é vista como tradução da mesma questão.
Para mim não existe interior, não existe exterior, existe uma relação. Uma coisa "interna" a A é "externa" a B e vice-versa. Trata-se de mera sinalização. Sinais são convenções. Tudo é construído, exceto a possibilidade de se relacionar, de construir. Na página 27 do livro "Terra e Ouro são Iguais" * escrevo: "É muito difícil para o psicólogo dualista, categorial, tipológico entender o comportamento humano sem recorrer às ideias de interior e exterior. Ainda hoje Jung é seguido e tido como grande pensador: ele classificava o humano em tipos introvertidos e extrovertidos. Achava, tanto quanto Freud, que a percepção é uma projeção dos conteúdos internos do sujeito. A própria percepção, nessas conceituações, é um objeto."
Através do conceito isomórfico, os gestaltistas alemães disseram que as estruturas (gestalten) neurológicas são iguais às psicológicas, disseram ainda que o que está dentro está fora. Percebemos por haver estruturas neurológicas e psicológicas que possibilitam isto.
Imaginar um interior, um exterior é coisificar o homem, é transformá-lo em uma caixa e depois procurar abrir saídas, janelas para suas demandas e realizações, estabelecendo aplanadores de caminho - como fazem várias psicologias e psicoterapias adaptativas - não sabendo o que é o homem, criam uma série de senhas para decifrá-lo e explicá-lo. Falam de interioridade como se existisse um lugar do psicológico dentro do organismo humano, por exemplo: mente, inconsciente etc.
Não existe o inconsciente, gerenciador da realidade interna, também não existe a mente, receptáculo de dados. O que existe é o homem no mundo, percebendo, categorizando, conhecendo. Perceber é se relacionar, é conhecer. O pensamento é o prolongamento da percepção.
Pensar é prolongar o percebido é uma percepção que se expressa ou que se memoriza.
* Terra e Ouro são Iguais, Percepção em Psicoterapia Gestaltista, Vera Felicidade A. Campos
- "Icons", Maurits C. Escher
- "Godel, Escher, Bach: An Eternal Golden Braid", Douglas R. Hofstadter
Escher e a Fita de Möbius ("As Formigas")
Animação do quadro de Escher: "A Fita de Möbius II"
verafelicidade@gmail.com
Vera, adorei o texto (como sempre). E as animações de Escher são ilustrações perfeitas das idéias colocadas!
ResponderExcluirBjs
Ioná
Obrigada, Iona é muito bom tê-la como leitora.
ResponderExcluirBeijos,
Vera, eu também adorei o texto! Ele continua o anterior e amplia.
ResponderExcluirEssa coisa toda de dividir para entender, a escolha, as classificações, tudo isso cria uma mesmice, uma monotonia total. Sempre partindo de ideias preconcebidas perdemos flexibilidade. Quando se pensa em termos de relação, por outro lado, percebe-se a singularidade das coisas e as semelhanças entre elas e então tudo é dinâmico e pulsante. Existe uma diferença enorme em como percebo as coisas hoje e como percebia antes de ter acesso ao seu pensamento. Não só muitos conceitos foram quebrados por questionamento, mas também percebo que já não caio mais nos velhos caminhos de pensar. “A” já não leva necessariamente a “B”. “X” e “Y” passam a existir e podem muito bem negar “A” e tudo formar uma nova figura. E o melhor, eu consigo aceitar essa nova figura e não me sentir ameaçada por ela. Acho que fiquei mais inteligente! Rss...
Adorei o que você escreveu: “Tudo é construído, exceto a possibilidade de se relacionar, de construir.”
beijos.
Natasha, incrível como você globalizou tão rápido! Gostei muito de suas cogitações.
ResponderExcluirBeijos
Que prazerosa a leitura deste artigo, Vera!
ResponderExcluirSabe que tomei conhecimento de seus livros há alguns anos, quando me deparei com uma menção a seu primeiro livro e o capítulo "O mito do inconsciente". Fiquei totalmente impressionada e curiosa quanto a sua teoria, seu pensamento e comecei a ler tudo que encontrei nas livrarias daqui de São Paulo. Achei fantástico alguém questionar a "pedra fundamental" da psicanálise e de praticamente todas as psicoterapias e além disto, propor um sistema tão coerente e elaborado de entendimento do homem e suas questões psicológicas.
Não é fácil abandonar vícios, principalmente "vícios de pensamento" tão insistentemente propagados como estes que você questiona; aliás, fico com a impressão que apesar dos maravilhosos desdobramentos de seu pensamento nestes artigos e outros escritos, o grande questionamento é um, ou o questionamento básico que você faz é ao dualismo em todas as suas facetas e neste ponto, não se trata mais de "vício de pensamento" como se pensássemos corretamente e de vez em quando "escorregássemos no vício" (por fazer concessões à didática, por ligeireza etc) mas trata-se do questionamento ao pensamento mesmo, à falta de globalização, a não percepção da relação, à falta de discernimento, estou certa?
Neste artigo, "viajei" muito com o interno-externo, pensando nas minhas leituras espiritualistas e de fillosofia da religião, ficaria muito longo comentar aqui. O que ficou bem claro e elucidativo para mim, além do interno-externo, foi a negação do inconsciente e da mente, que você mais uma vez, expõe tão brilhantemente.
Ah! ainda tem o presente do quadro de Escher, lindo e ilustrativo de suas idéias desenvolvidas no texto. Você com certeza viu o enorme sucesso de sua exposição no Brasil esse ano, aqui em SP, Rio e Brasília... no CCBB de Brasília bateu todos os records de visitações dos 10 anos da instituição: 200 mil pessoas.
Obrigada tanto pelos artigos quanto pelas ilustrações de autores, livros e artistas.
Um abraço
Vera ,não sei se entendi seu texto completamente.Desconfio que não...mas o filme me fez compreender o SAMSARA ,ou melhor dizendo, eu vi o SAMSARA na minha frente o que é diferente de compreender.Obrigado,rsrsrs...
ResponderExcluirBjs
Que bom, Mônica, acho que você teve a sensação de infinito propiciada pela quebra dos limites, do interno-externo; para você foi equivalente ao Samsara.
ResponderExcluirBeijos
Ana, "vícios de pensamento" é um resumo maravilhoso que você fez do dualismo. Gostei da propriedade de suas reflexões; agora, questionar o pensamento só é possível quando se questiona as atitudes, as estruturas perceptivas responsáveis pelas distorções, consequentemente pelos "pensamentos viciados" que você falou.
ResponderExcluirAbraço
Obrigada pela generosidade, Vera.
ResponderExcluirNovo impulso de expansão agora com sua resposta... rs... se "pensamento é prolongamento da percepção" todo questionamento que você faz é a "estruturas perceptivas". Perfeito.
Abraços
Isso mesmo,Ana.Abraços
ResponderExcluirVera, realmente a vida ganha uma cor diferente quando a percebemos sem esses dualismos interno/externo, objetivo/subjetivo, físico/psíquico etc.
ResponderExcluirAs analogias que vc faz são sempre geniais, mas essa da fita de Moebius foi de tirar o fôlego! Assim como ficamos meio desnorteados e fascinados quando, seguindo uma face da fita com o dedo e percorrendo toda sua extensão percebemos que só há uma face (!) – ainda que “vejamos” duas –, me sinto desnorteada e fascinada ao pensar que não há interno e externo.
Por outro lado, isso explica a angústia causada pelo dualismo físico/psíquico, corpo/espírito e afins, que sempre me incomodou. Ao pensar mais atentamente sobre a questão da saúde e da doença, por exemplo, é enlouquecedor dividir o homem em físico e psíquico. A questão da saúde fica sem solução, pois não dá para viver ou sequer refletir sobre uma saúde do corpo e uma saúde mental separadamente. Da mesma forma, separar o homem em uma parte matéria e outra parte dita imaterial (e eu acho que não existe nada no universo que seja imaterial, e olha que acredito em reencarnação, para você ver como a coisa fica, aparentemente, confusa para mim) é perder o homem e ficar com duas partes mortas, que não são nada.
Ontem eu assisti ao filme Matrix (não via desde a época em que passou no cinema) e, lendo seu texto agora, me senti tomando a pílula vermelha.
Fiquei também muito interessada no “Gödel, Escher e Bach”. Fui procurar sinopses dele e deu ainda mais vontade de ler.
Obrigada sempre, Vera.
beijos.
Clarissa, vejo que o efeito da pílula vermelha foi bom!!! rsrsrs.
ResponderExcluirNas tradições clássicas da filosofia indiana, no Samkhya-yoga por exemplo, o psíquico, o não denso, o que se chama de alma ou de espírito, também é matéria.
Os gestaltistas alemães, com o princípio isomórfico, resolveram este problema (citei neste artigo).
Beijos
Ter o insight de que não existe uma separação dentro/fora, acho que foi um resultado ao longo do tempo dos minhas elucubrações sobre por que eu sou eu e não outra pessoa, na busca de entender as relações perceptivas, e um entendimento mais claro depois de ler os livros da Vera. Antes eu já tinha intuído isso acho que motivado pela leitura de uma citação de Jung em um livro sobre física quântica. Embora, como Vera escreveu em terra e Ouro são Iguais, Karl Jung trabalhou com os mesmos fundamentos teóricos da psicanálise que Freud, ele parece ter tido um insight da unidade em algum momento: "Uma vez que psique e matéria estão contidos em único e mesmo mundo, e além disso estão em contato recíproco contínuo, e em última análise, repousam sobre fatores irrepresentáveis, transcendentes, não só é possível, mas até altamente provável, que psique e matéria sejam dois aspectos diferentes da única e mesma coisa." (Jung, 1971). Se tudo é uma coisa só, não existe dentro e fora. Isso em meu ver Vera disse com bem mais clareza sobre a polaridade resultar da unidade – que eu entendi lendo seus livros inicialmente como reversibilidade de figura fundo, o fundo constitui a figura, e a figura pode virar fundo, figura e fundo sendo dois polos da mesma unidade, estendendo isso a sujeito e objeto (talvez esteja confundindo os conceitos novamente). Quando a gente está percebendo, sem pensar sobre isso, não percebe dentro e fora, só percebe, como Husserl descreveu a capacidade de dirigir a atenção como uma da qual não temos percepção. Ah, M. Escher é quântico, inclusive tem o ponto de descontinuidade, onde tudo recomeça, em muitas obras suas. Gostei de ler tudo que vocês escreveram.
ResponderExcluirAugusto, Jung e Freud são igualmente dualistas. A própria citação que você fez de Jung é um exemplo do dualismo dele: psique e matéria, matéria e mundo …!!! E aliás, eles não estavam interessados em questionar o dualismo. Não vejo possibilidade de você ter "intuido" unidade lendo citações de nenhum dos dois.
ResponderExcluirO que você escreveu sobre figura-fundo, percepção, pensamento (tentando usar minhas conceituações) e sobre Husserl está completamente distorcido e confuso. A sua interpretação de Husserl não corresponde ao que Husserl fala sobre a intencionalidade, tanto quanto o que eu conceituei sobre percepção e pensamento não corresponde.
Abraço
Imaginei que estivesse confuso mesmo, Grato por seu comentário. Vou estudar mais. Quando citei Husserl, foi por que entendi que que quando se está com a atenção em algo, se percebe diretamente, nem se cogita em interno, externo, só se percebe, como uma coisa só. Não vejo interno e externos como coisas separadas na percepção.
ResponderExcluirAugusto, este artigo pode ser lido no contexto do questionamento à visão elementarista de percepção como captação de dados pelos sentidos, dados estes posteriormente organizados pela mente, por exemplo. Esta é a visão corrente, elementarista, dualista que implica em categorias como realidade interna e realidade externa.
ResponderExcluirEu afirmo que percepção é relação, percepção é conhecimento (percepção no contexto do presente). A percepção da percepção é categorização, o prolongamento da percepção é pensamento. Não existe realidade interna e externa se percepção é entendida desta forma, como relação, e isto é um desdobramento meu. Os gestaltistas clássicos pararam da formulação das Leis da Percepção e Husserl, não tinha "percepção" como uma questão a ser tratada especialmente; seu conceito de intecionalidade está ligado ao de consciência, para ele a "consciência intencional" se relaciona com seus objetos.
Seu comentário: "perceber diretamente, perceber indiretamente" é afirmação elementarista; "cogitar sobre interno, externo", é afirmação decorrente deste elementarismo.
Abraço
Oi, Vera
ResponderExcluirQue bom! rs não troco a vermelha pela azul de forma alguma, rss.
Ótimo saber que alguma filosofia considera o que se entende por ou é chamado de espírito/alma/psíquico como matéria. Gostaria muito de ler mais sobre isso. Fiz uma busca rápida na internet e foi o suficiente para perceber que há um mar de informações sobre o Samkhya-yoga, que você citou como exemplo, algumas coisas muito controversas, outras engessada ou misturadas com ideias que me parecem de outras escolas filosóficas ou até pessoais, de quem disponibilizou a informação. Bem, posso estar enganada, já que não conheço nada sobre, mas foi a impressão que tive. Você teria alguma indicação de boa leitura sobre esse assunto?
Quanto ao princípio isomórfico, preciso entendê-lo melhor, pois os Gestaltistas alemães resolveram essa questão, mas eu ainda preciso comer muita farinha para resolvê-la, rs. Vou estudar, Vera.
Obrigada.
Beijos.
Clarissa, para iniciar a leitura do Samkhya: A History of Indian Philosophy, de Surendranath Dasgupta; ainda sobre a sua questão de querer "entender espírito/alma/psíquico como matéria", leia Marx e Engels em "Materialismo Dialético".
ResponderExcluirVocê não precisa "resolver a questão" do isomorfismo, como você fala, basta você saber o que é isomorfismo.
Estudo como meta é obstinação, esforço, às vezes válido para concursos, não funciona para a filosofia, psicologia, epistemologia e afins (no "Denso e Sutil", neste blog, trato disto).
Beijos
Certo, Vera. Eu me perco muitas vezes nessa obstinação. Obrigada pelo alerta e pelas respostas. beijos.
ResponderExcluirOK Clarissa, beijos.
ResponderExcluirPerfeito Vera. A relação que fiz no meu pensamento foi essa de que a percepção do presente no contexto do presente. Na teoria embaralhei. Uma outra coisa que me levou a perceber interno e externo como não existentes foi ver que eu não tinha problemas que aconteciam fora de mim, mas que problema era eu. Assumi minha autonomia e as coisas começaram a mudar. Não estou dizendo que tudo o que acontece é minha responsabilidade por que não sou responsável pelos atos dos outros, mas no sentido de não transferir aos outros a responsabilidade pela minha vida.
ResponderExcluirOk Augusto, é um depoimento seu em relação seus problemas.
ResponderExcluirAbraço
Poetizando:
ResponderExcluir" Sem possuir um dentro e um fora,
tal como as pedras, sem miolo:
é só miolo: o dentro e o fora
integralmente no contorno."
João Cabral de Melo Neto
;-)
Milena
Oi Milena. Abstração e poesia andam juntas, lembra de "Morte e Vida Severina"? Um verdadeiro tratado socio-antropológico do Nordeste brasileiro.
ResponderExcluirBeijos
Com certeza, Vera.
ResponderExcluirBeijos,
Milena