Preconceito

É o conceito antecipado, é o entendimento, o conhecimento independente da relação que se estabelece com o conhecido. É a cópia, a reprodução a sobreposição de conhecimentos prévios sobre situações novas. Conceitos antecipados geram cópia, genéricos usados sempre em abundância, necessitando, portanto, de catalogação e arquivamento para estar sempre prontos para o uso.

A sabedoria popular, através de sua coleção de provérbios, também ajuda a incorporar experiências responsáveis por conceitos antecipados, por preconceitos. "Quem vê cara não vê coração", "diz-me com quem andas que te direi quem és" são alguns exemplos. Segui-los, orientar-se  por este saber disseminado pela vox populi é impermeabilizar-se às próprias experiências. Estes filtros são mediações que obscurecem. Fica impossível perceber igualdade quando tudo já está carimbado e descrito como bom, ruim ou prejudicial.

Na Idade Média, além de regras de conduta e geradores de advertências, os provérbios representavam quase todas as relações de superestrutura. Mesmo a pintura era influenciada por eles. Hieronymus Bosch, por exemplo, tem um de seus mais conhecidos quadros baseado em um proverbio flamengo: "o mundo é como um carro de feno e cada um colhe o que puder" (no sec. XVI se referia aos desejos materiais, à ganância, à concorrência, à falta de solidariedade). Este provérbio medieval ainda pode ser usado hoje em dia; a melhora é que muita antítese é feita a esta atitude, através de leis principalmente, mesmo que tenhamos os atuais "salve-se quem puder" e o "farinha pouca, meu pirão primeiro".

Além da experiência, outra fonte geradora de preconceitos são as expectativas criadas pelos desejos. O desejo estabelece os padrões, as regras necessárias para sua realização. Satisfazer a carência, arranjar amigos que podem ser bons, úteis, obriga a frequentar ambientes que favoreçam a realização deste desejo. Amigos bons são, por exemplo, os bem educados, os que ocupam lugares destacados na sociedade. Quando aparece alguém com estes requisitos, imediatamente é considerado bom. Este julgamento antecipado induz a muitos enganos. Frequentemente "o bom partido" por exemplo, também está interessado em conseguir realizar seus desejos, colecionar namoradas etc.

Só percebendo que todos somos iguais, que as diferenças entre os seres não são estabelecidas pelos aspectos étnicos, nem pelos culturais, educacionais e econômicos é que é possível não ter preconceito em relação ao que seria um ser humano bom ou ruim. Só através do relacionamento com  o outro é que podemos perceber o que é humanizado ou desumanizado.

O preconceito, quando ocupa o lugar dos conceitos, restringe a experiência, parcializa o encontro com o outro e com o mundo, à medida em que orienta, sinaliza. É um impermeabilizante, um filtro, uma cunha responsável por quebras e divisões. Ser preconceituoso, ter conceitos antecipados, não importa a respeito do que seja, é viver defasado, é ter informações e conhecimento de segunda, terceira mão, é estar sempre manipulado.

O preconceito é a alavanca para a manipulação, quer seja da família, da sociedade, das ciências, religiões ou ideologias.

Ciência e religião alicerçadas em dogmas geram muitos preconceitos responsáveis por terríveis carnificinas: guerras religiosas (católicos e protestantes, árabes e judeus), genocídios comandados e fundamentados em pseudo verdades científicas como raça superior e inferior por exemplo.

Ter um selo de garantia exige avaliação, verificação. Preocupado em não errar, em não se enganar, o homem se aprisiona ao que o limita.







. "O Carro de Feno", Hieronymus Bosch  (Museu do Prado, Madrid)
. "O outono da Idade Média", Johan Huizinga

Animação com partes do quadro "O Jardim das Delícias"
de Hieronymus Bosch, por Eve Ramboz



verafelicidade@gmail.com

Comentários

  1. Olá Vera, magistral e surpreendente a maneira como você passou do 'provérbio' ao 'preconceito', chegando 'aos dogmas', religiosos ou científicos. E ainda esta bela ilustração de Bosch!

    Eu adoro a pintura icônica medieval; além da beleza dos traços, cores e textura da madeira, gosto principalmente porque parecem tratados da mentalidade da época. Claro que tem o termo geral da dominação da Igreja nos vários aspectos da cultura, o autoritarismo perverso da moral cristã, mas a Idade Média teve suas fases, como você bem sabe, e Bosch é um destes expoentes de um período de relativa decadência do domínio religioso sobre as mentalidades, tinhamos a alquimia, a bruxaria, a heresia e aí vem a dúvida se Bosch representava práticas de uma seita herética ou reproduzia os ditames da moral cristã. Para mim é um mistério e seus quadros ficam ainda mais instigantes e bonitos, apesar de que acho mais provável que ele estivesse "a favor" da moral e que suas pinturas, como esta que você cita, sejam críticas de comportamento, exposição da fragilidade humana diante das tentações, bem ao gosto do pensamento religioso dominante.

    Você conhece a animação que o francês Eve Ramboz fez com "O Jardim das Delícias"? Pena que videos do Youtube não aparecem aqui nos comentários (percebi isto em um comentário de alguém no seu artigo anterior), mas é tão bonito que vale o trabalho de buscar: http://www.youtube.com/watch?v=AqiBH-jNW4g&feature=youtube_gdata_player

    Você tem toda razão quando diz que estas máximas que chamamos 'sabedoria popular' não passam de veiculadores de preconceitos; da mesma forma todas as afirmações dogmáticas (me lembrei de seu artigo "A certeza como engano"). São terríveis também porque induzem comportamentos, você não acha? Algumas soam quase como uma instrução a ser aprendida, como a que você citou: "farinha pouca meu pirão primeiro".

    Abraço

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  2. Ana, obrigada pelo comentário bem demonstrativo de tudo que eu queria explicitar quando ampliei a ideia de preconceito. Ao radicalizar encontrei suas origens na percepçao distorcida e autorreferenciada, consequentemente em seu prolongamento: "o meio pensamento", "o pensamento acrônico", o "pensamento parcializado", enfim, o antes ou o depois aplicados no agora, gerando preconceitos.

    Adorei o video que você sugeriu, vou colocá-lo no 'post', é a única maneira dele aparecer como vídeo no blog.

    Abraço

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  3. Olá Vera, obrigada por sua resposta. Vi o vídeo no post, ficou muito bonito.

    Desde a primeira leitura deste artigo, passado o deslumbramento com a pintura e a Idade Média... rs, fiquei pensando nas suas colocações sobre o estreitamento que os preconceitos geram em nós. Claro que 'preconceito' tem uma definiçāo restrita, mas pegando a definçāo que você descreve, de 'conceito prévio' e radicalizando (como você diz) tudo vira 'preconceito': ideologia, filosofia, religiāo, ciência, enfim, parece que a cultura (no sentido antropológico do termo) é um "cabresto", um condicionante, um "preconceito". Depois pensei que estou alargando muito a definiçāo e que assim se perderia o sentido crítico de seu artigo e que afinal a "vivência do presente no presente sem categorizaçāo e sem prolongamento da percepçāo, sem pensamento" como você diz, é um instante de durabilidade inviável. Se meu raciocínio estiver correto, o que precisamos é de uma consciência crítica constante e de uma espontânea abertura para o novo, para o encontro. É isso ou estou errada?

    Desculpa os comentários enormes, mas cada frase sua me leva a pensar mil coisas.

    Abraço

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  4. Tudo bem, Ana, suas perguntas sāo sempre pertinentes: elas se referem a questões implícitas ou explícitas do texto, é um prazer respondê-las. 

    Em Psicoterapia Gestaltista, nāo se pode perder de vista estruturas e contextos, basicamente. Preconceito é o conceito prévio usado defasadamente em outro contexto, outra estrutura; neste sentido, tudo é preconceito se transposto de um contexto para outro, ou nada é preconceito, tudo é conceito se nāo houver defasagem. Ideologia, filosofia, religiāo, ciência etc sāo conceitos ou preconceitos à depender de que transposiçāo se faz. 

    "Consciência crítica constante" - nāo existe isso como tal, o que existe é uma atitude de questionamento, o que implica em estabelecer antíteses que criam o novo. 

    Respondi suas perguntas? Deu para entender?

    Abraços

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  5. OK Vera; sua precisāo e coerência sāo fantásticas. Entrar em contato com seu pensamento me dá a mesma sensação de quando olho um caleidoscópio: a qualquer movimento surgem  novas formas e cores, todas fascinantes... ainda estou em algumas frases do post e seu comentário já me acena com outras noções: "o novo advindo de antíteses", o preconceito como o conceito fora de seu contexto originário etc. 

    Eu sempre pensei "o novo" como o desconhecido, como algo que se encontra e você nos coloca como participantes de sua criaçāo na medida em que o novo resulta da açāo questionante, antitética. Isso é muitíssimo interessante e acho que nos remete à discussāo, em um de seus artigos deste blog, sobre aceitaçāo, antítese e mudança, um tema tāo caro para todos nós seja na dimensāo individual ou político-social.

    Obrigada pelos esclarecimentos, eu estava errada na compreensāo de sua afirmaçāo "pensamento como prolongamento da percepçāo", estava achando que este 'prolongamento' era necessariamente saída do contexto, por isso comecei a pensar que todo pensamento seria preconceito; um absurdo porque assim nāo existiriam conceitos. Eu estava entendendo que o desenvolvimento inexorável de todo conceito era tornar-se preconceito.

    Abraço

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  6. Ana, você diz que achava que "o desenvolvimento inexorável de todo conceito era tornar-se preconceito"; isso pode ocorrer se o conceito for utilizado como a priori. Para que tal nāo ocorra tem que se deter e globalizar o percebido. Husserl dizia que o apriori nāo existe quando "volta-se para as coisas", "desprendendo-se do horizonte temático" das mesmas através da epoche (igual a  por entre parêntesis); realizaríamos assim, a descriçāo do que está diante.

    Em psicoterapia,  quando a pessoa consegue deter-se no próprio problema sem buscar a soluçāo do mesmo,  começa a estabelecer mudanças abrindo māo de preconceitos, isto é, das maneiras que  ela acredita serem solucionadoras.

    Abraço

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  7. Obrigada pelas explicações, Vera. Eu tomei conhecimento de Husserl há algum tempo na leitura de seus livros. Um autor difícil para mim que prefiro ir conhecendo através das suas citações... rs... é impressionante essa proposta da suspensāo dos julgamentos e descriçāo (reduçāo) fenomenológica.

    Ficou claro para mim agora, a questāo de como conceitos podem ou nāo, tornarem-se preconceitos.

    Abraço

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  8. Ana, que bom que você nāo tem mais dúvidas sobre esta questāo.

    Abraço

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  9. Vera, seu texto mais uma vez é objetivo e consistente.
    Como li em seus livros os conceito se tornar em a priori, uma lente através da qual se interpreta tudo que se percebe, gerando distorção. Uma delas, em meu ver, é o mito de que a ciência vai resolver todos os problemas da humanidade. Em alguns círculos, a ciência está tomando o lugar da religião.
    Uma coisa que você diz no final me fez pensar no meu trabalho: “Ter um selo de garantia exige avaliação, verificação. Preocupado em não errar, em não se enganar, o homem se aprisiona ao que o limita.”
    Trabalho com certificação, que é uma verificação independente, para determinar a integridade de produto ou práticas na agricultura e indústria, concedendo um selo de garantia quando o produto passa. Por que existe muita fraude e falta de ética no mercado, dentro de aspectos abordados por vários artigos anteriores seus (desejo de riqueza e poder, ganância, etc.). A grande indústria confunde o publico misturando os conceitos de tecnologia e ciência, homogeneizando a produção de vendendo caro o que é muito barato, em vários casos explorando trabalho infantil e aviltando o trabalho das pessoas. Na certificação existem padrões de referencia adotados internacionalmente, que podem melhorar práticas e padrões, mas não resolvem tudo e podem ser usada de forma errada e inautêntica (greenwashing por exemplo). Assim ler seu artigo trouxe um ar fresco para mim para repensar tudo isso com distanciamento.
    Abraço

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  10. Ana, um pouco de Histórica talvez ajude a compreender a pintura de Jheronimus Bosch. Nos países baixos houve um longo movimento que eclodiu na reforma (1517 em diante) quando se adotou a liberdade religiosa e rompeu-se com a igreja católica, houve tolerância com os judeus e qualquer religião (desde que pagassem impostos, é claro), depois de longo domínio espanhol e católico. A Reforma aconteceu após a época de Bosch, mas ele de alguma forma refletiu o movimento contra a opressão católica, precisava renovar. Bosch foi único e antecipou e serviu de inspiração a movimentos e estilos futuros na pintura e mesmo a coisa bidimensional da pintura medieval nele já é diferente, tendo elementos iniciais de perspectiva que Leonardo codificou na pintura. Vi alguns quadros no Museu do Prado. O Jardim das Delícias foi pintados em 3 painéis de madeira articulados, e tinha uma informação de que serviu inicialmente de tampo de mesa. Gostei do vídeo e do seu diálogo com a Vera.
    Abraço,

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  11. Augusto, que bom que o meu artigo "lhe trouxe um ar fresco", oxigenou as contradições que você enxerga em seu trabalho.

    Abraço

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  12. Olá Augusto, eu também gostei muito do diálogo com a Vera e adoro o tríptico "O Jardim das Delícias". Com certeza o contexto histórico é importante para entender a arte, eu nāo diria o mesmo para apreciá-la. Como eu disse no primeiro comentário, H. Bosch viveu no declínio da Idade Média, assim como seu contemporâneo Leonardo Da Vinci. Eu acredito que toda a discussāo em torno das motivações de Bosch e interpretaçāo de suas pinturas, só enriquecem; sāo centenas de páginas e teses tentando definir se ele era, como você diz, um representante desse momento de rebeldia contra a dominaçāo católica ou se era um homem medieval, atormentado por conflitos entre as tentações da vida mundana e as aspirações ascéticas, conflitos esses temperados pelo imaginário da época que era repleto de superstições,  delírios sobre pecados, magia etc imaginário que ele como grande artista que era, estetizava. Eu prefiro esta última tese.

    Abraço

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  13. Vera, quando leio seus posts tenho vontade de lhe abraçar para agradecer. Obrigada! As discussões também são ótimas. Adoro ler os comentários, as dúvidas dos outros, que também são minhas na maioria das vezes e, mesmo quando não são, suas respostas sempre me fazem refletir mais e ver o que não havia visto antes. Sem falar nos vídeos e reportagem que o pessoal anda indicando por aqui =) Maravilha. Boa noite a todos. Bjs.

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  14. Ah! Eu estava sentindo sua falta no blog, Clarissa. Fico feliz de estar possibilitando estas percepções.

    Beijos

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  15. Muito bom. Obrigada por permitir aprender um pouco mais... Bem haja

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  16. Oi, Vera.
    Os seus textos se destacam de todo o resto justamente pelo que vc explica nesse último: vc não copia, não repete, não cataloga, vc realmente se relaciona com o outro, globaliza e por isso suas idéias são tão fortes, honestas e coerentes, nos fazem repensar um monte de coisas e questionar nossos preconceitos.
    Achei incrível como vc, ao invés de destacar o respeito às diferenças (como seguem fazendo todas as campanhas contra o preconceito), vc ressalta que somos todos iguais e, a não percepção disso é a essência do problema.
    Bjs,

    Ioná

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  17. Ioná,muito boas suas reflexões; principalmente quando você aponta as posturas valorativas, parcializadoras,preconceituosas (desde que cheia de objetivos politicos usadas) usadas nas "campanhas".Beijos

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  18. Vera, faço de suas palavras as minhas"Só percebendo que todos somos iguais, que as diferenças entre os seres não são estabelecidas pelos aspectos étnicos, nem pelos culturais, educacionais e econômicos é que é possível não ter preconceito em relação ao que seria um ser humano bom ou ruim. Só através do relacionamento com o outro é que podemos perceber o que é humanizado ou desumanizado."

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