Simbioses doentias

A bondade cruel, a simbiose doentia são oximoros e são também o que acontece em relações de dependência/cuidados obrigatórios, relações fundamentadas em não aceitação, relações que respondem a necessidades. Neste contexto, tudo pode acontecer, até 'dependentes' que agem como algozes e 'independentes' que se submetem.

A dialética dos processos e dos relacionamentos nos mostra que todo apoio é opressor, que o que apoia, oprime. É físico, é espacial, é nítido que o que está seguro está apoiado. É fundamental para a continuidade do processo relacional humano - para o processo de ser no mundo - não estar seguro, não estar apoiado, não estar posicionado. Todo relacionamento gera posicionamentos, geradores de novos relacionamentos e assim infinitamente. Exercer esta dinâmica é fundamental para a existência de movimento, de reversibilidade perceptiva, para se perceber e perceber o outro sem os posicionamentos do autorreferenciamento ou da renúncia de si para cuidar do outro, sem os posicionamentos da pregnância alienadora do que está diante de si.

Suportar a necessidade de ajudar e prover é esvaziador e aniquilador das boas intenções e propostas; é exemplo de como o cuidar do outro sem aceitar suas limitações é desumanizante. O posicionamento desumaniza. As vias únicas resultantes do posicionamento, resultantes da não interação, coisificam.

O filho drogado, depois de algum tempo, escraviza os pais que passam a ansiar por  libertação, passam a desejar a redenção que virá com a morte do filho, por exemplo. O que redime gera culpa tanto quanto disfarça a impotência cotidiana.

Parceiros e amigos deprimidos, voltados para a vivência de suas tristezas e mágoas, se transformam em fardos, caixas de surpresas desagradáveis.

Cuidar dos pais velhos ou doentes, quando este cuidado não está contextualizado em disponibilidade, cria obrigações insuportáveis para quem se obriga ou é obrigado a este processo.  E o filho incapacitado após um acidente sem perspectiva de melhoras? Sem disponibilidade, sem integração estes relacionamentos são esvaziadores e coisificantes, são simbioses doentias; não existe "instinto materno ou paterno ou filial ou fraternal" tampouco "instinto humano".

A obrigação imposta, o submeter-se existem; não importa como são estabelecidos, não importa se contextualizados anteriormente no que se vivenciava como amor, ou como gratidão, ou como retribuição ou dívida; tudo isso é alienador, gera simbiose, fusão que pode até atingir o equivalente de torturador/torturado. São fusões posicionantes, redutoras que prejudicam à medida que pontualizam o processo do estar no mundo.

Tudo que responde à uma necessidade, tudo que nos deixa sem saída é sempre questionável. O questionamento permite que a situação seja mudada, reestruturada: saídas surgem e/ou surgem possibilidades que mudam a rigidez, a mesquinharia, possibilidades que podem até transformar maldade em solidariedade.

















- "Paula" - Isabel Allende
- "O pequeno principe" - Antoine de Saint-Exupéry
 

verafelicidade@gmail.com

Comentários

  1. Nunca entendi essa relação tão frequente entre pais e filhos drogados ou perturbados de alguma forma, entre filhos e pais idosos, entre alguns casais. É impressionante, comovente como algumas frases suas parecem chaves mágicas: "todo apoio é opressor", "o posicionamento desumaniza", "sem disponibilidade… relacionamentos são esvaziadores", "questionamento … pode até transformar maldade em solidariedade". Enfim, são chaves transformadoras, que abrem para uma nova visão, como no tema deste artigo, onde a maioria de nós pensaria em pessoas vitimas da vida, das sitações sem saída e você mostra como a aceitação e disponibilidade muda tudo e oferece saídas, como vítima e agressor andam de mãos dadas! Geralmente, quando vemos essas relações de dependência ligadas a acontecimentos trágicos e limitadores, pensamos "graças a Deus que não é comigo"; esquecemos que nossa existência, nossa vida mesma tem início numa simbiose que se não for contextuada em disponibilidade, com certeza é "cruel e doentia" com não menos trágicas consequências.

    Abraço

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    1. Ana, muito obrigada, esse seu comentario unificou uma serie de camadas por mim levantadas.

      Abracos

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  2. Vera,

    Este seu texto veio em resposta a coisas que me acompanham durante toda a vida e que por vezes dormem no esquecimento, mas que, coincidência ou não, eclodiram violentamente nos últimos dias.

    Eu estou muito emocionada. Queria escrever muito e dizer tudo que pensei e senti ao ler suas palavras, e as dúvidas que correm em minha cabeça, mas vou esperar a sua volta...

    Sinto como se tivesse feito uma daquelas terapias em que nada fica como era antes, em que a dor da divisão - de um lado a necessidade de sobreviver e do outro a vontade de transcender – emerge, se impõe e então dói muito, mas ao mesmo tempo me faz sentir viva, limpa, enxergando a mim mesma perfeitamente, pois a divisão é tudo que sou.

    Obrigada sempre, Vera.

    Beijos.

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    1. Bom dia Nathasha, suas constatacoes expressas neste comentario com certeza vao ajudar muitas pessoas a perceberem divisoes, a verificarem que inconsciente eh sinonimo de ma fe (como dizia Sartre) de conveniencia etc va em frente, so o fato de voce se situar no meio da confusao ja lhe da condicoes de mudanca.

      Beijos (estou em um teclado q nao permite acentuacao)

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  3. Vera,
    Acho impossível ficar indiferente, não se deter e rever seus conceitos lendo um texto como esse. Demagogias, relações doentias, jogos e não aceitações estão expostas de forma que não temos como negar. Um questionamento que comove ao mesmo tempo em que mostra possibilidades de mudança.
    Obrigada,
    Bjs.

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  4. Oi Vera, seu artigo é maravilhoso e contundente, de fato sentir-se obrigado numa relação a fazer qualquer coisa cuidar, prover, etc.. gera raiva, medo e culpa, divisão não é isto ?

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    1. Exatamente Rosélia. As implicações das atitudes de conveniência são devastadoras para o equilíbrio psicológico e relacional.

      Beijos

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  5. Vera,

    Ao longo da semana, refleti sobre o texto e me vieram na lembrança várias situações onde as “simbioses doentias” aconteceram e que somente através dos questionamentos terapêuticos, foram possíveis alguns "movimentos".

    A oportunidade de rever tudo que voce sempre afirma, de forma clara e simples, através da leitura dos textos,esse em especial, é bastante motivador para continuar a caminhada.

    Obrigada também

    Ana Cristina

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  6. Obrigada Ana Cristina, o importante é a motivação persistir, é a continuidade sem deslocamentos.

    Beijos

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