Trapaças e fetiches
Tudo que é usado como aderência se transforma em um extra ao processo. A própria aderência já é alheia ao que ocorre.
Utilizar-se do extra é um recurso que sempre amplia. Ampliar é justapor. Esta justaposição é um momento de trapaça em relação às ordens intrínsecas constituintes - perverte funções. A popular idéia de que "quem não tem cão caça com gato", a improvisação em função dos fins a realizar é maquiavélica, engana e transforma o outro em receptáculo de desejos, em objeto. Transformar o outro em fetiche é perversão; além de desumanizá-lo utiliza-se este objeto para propósitos solitários (autorreferenciados). Nas perversões é frequente encontrar o indivíduo rodeado de outros indivíduos submetidos a seus propósitos: sexo, dinheiro, poder etc.
Ideologias, religiões, certezas e medos podem perverter à medida que passam a ser aderências determinantes dos relacionamentos. Acreditar, por exemplo, que o filho é uma encarnação demoníaca e começar a enxergá-lo assim é uma perversão constante no quadro da não aceitação ("encarnação demoníaca" é denominação para várias situações: o filho com defeito físico, com dificuldade de adaptação, o filho que não aprende, o filho rebelde, o filho que tira péssimas notas etc).
Querer esculpir o próprio corpo (silicones, bisturis e próteses) em função do gosto do momento, da moda, é um fetiche, trapaça desesperada de tentar aceitar o que não se aceita. Em muitos casos, mudar o nariz, aumentar os seios, apenas adiam, escondem o desespero de não se aceitar, criando um álibi, um pretexto para justificar a não aceitação.
O "corpo sarado", como fetiche, é visto como uma garantia de relacionamentos amorosos, o poder e a riqueza como fetiches são considerados garantia de aceitação social etc; estas são formas evidentes do deslocamento das problemáticas.
"A casa do incesto", de Anaïs Nin
"O livro dos seres imaginários", de Jorge Luis Borges
Eu as vezes me pergunto quem veio primeiro: a sociedade propondo os fetiches (modas, estéticas e tendências, valorizações sociais e incentivo à competição) ou a demanda por tudo isso advinda das idiossincrazias? O ovo ou a galinha? Há sempre uma justificativa para este tipo de desvio que a Senhora descreve: "a sociedade moderna é assim".
ResponderExcluirBem, mas entendo que pessoas honestas e inteligentes não têm que seguir o rebanho. Muito interessante seu artigo.
Manoel C.
Manoel C. esta questão do ovo e da galinha, isto é das causas, de como as coisas começam, tem uma excelente resposta clássica do Husserl, criador da Fenomenologia: "tragam-me o ovo e a galinha e eu respondo".
ExcluirO processo tudo explica, suas variações tudo configura. É uma questão de contexto, em termos de individualidade é como os problemas são vivenciados.
Abraço
Obrigada pela resposta, muito esclarecedora para mim principalmente na abordagem psicológica ("em termos de individualidade é como os problemas são vivenciados"). Tenho gostado muito do seu ponto de vista neste blog, aliás, o interessante não é gostar ou não, é como a Senhora nos faz pensar.
ExcluirAbraço, Manoel C.
Obrigada, Manoel, abraço.
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