Covardia

Covardia é o que resulta da avaliação e omissão em uma estrutura autorreferenciada.

Quando se está travado pelas conveniências, decisão e tomada de posição não existem. Medo e covardia são, usualmente, considerados sinônimos. É como se a omissão (o medo) fosse ampliada pela conveniência. Avaliar lucros e perdas faz com que o indivíduo se retire da situação vivenciada. Muitas vezes esta retirada só é conseguida através de mentiras, falsidades, hipocrisia. Não querer enfrentar uma situação faz com que sejam utilizados vários expedientes, clichês sociais como "não se meter na vida alheia", "evitar denunciar" ou em determinadas situações  "é melhor denunciar", "ninguém sabe o que vai advir" etc.

Delatores, tanto quanto discretos que jamais interferem, são alguns dos covardes escondidos sob o politicamente correto ou o comunitariamente necessário.

Quanto maior o autorreferenciamento, quanto mais estiver a vida focada na realização de necessidades contingentes, maior a valorização do que é conveniente, maior a avaliação de lucro e prejuízo, assim como da vida protegida pelo nicho da hipocrisia, medo e covardia.

Sem atitude solidária, as pessoas dedicam-se à realização das próprias demandas, demandas estas escondidas nas conivências e conveniências consideradas necessárias à manutenção da boa ordem, do bem-estar, do equilíbrio, dos compromissos satisfatórios e alimentadores.

Ser covarde é não ter condição de estar no mundo com o outro, é o resultado do exílio exercido pela garantia da isenção diante do questionante.

Dos comportamentos reinantes, desde os encontrados nos regimes de exceção (ditadura brasileira e o "inocente útil", por exemplo), às denúncias e silêncios impostos pelas quadrilhas, gangues e máfias instauradoras de violência e devastação, temos a covardia como uma constante.

Comunidades, congregações, agremiações, inclusive religiosas, subsistem graças à manutenção de subordinação às regras estabelecidas, jamais questionadas e por isso mesmo ninhos protetores de mentiras, incestos, apropriações, fraudes e atitudes escusas mantidas pela submissão covarde aos poderes de suas lideranças.

A conivência, a cumplicidade são também geradas pela covardia - muitos lares, famílias são mantidas pela adaptação, pela covardia de fazer de conta, ignorando infidelidades e escândalos. Nesta atmosfera, ser covarde é ser adaptado, adequado, tanto quanto estar submetido ao que o desumaniza e infelicita.

Salvar a própria pele, ferindo, destruindo a alheia, é também um dos aspectos do comportamento covarde.
















- "Holocausto Brasileiro" de Denise Arbex
- "Conhecimento e Interesse" de Jürgen Habermans


verafelicidade@gmail.com

Comentários

  1. Vera e leitores, esse artigo é tema de minhas reflexões. Interessante que vi o livro intitulado Holocausto Brasileiro em livraria de aeroporto e o achei instigante. Ao que me lembro, o jogador Heleno, representado por Rodrigo Santoro no filme que retrata o jogador e o time de futebol Botafogo, do Rio de Janeiro, foi internado no hospício ao que se refere o livro, em 1959. Como E. que foi internada pelo pai militar e levou eletrochoques de lavagem cerebral para "livra-la" do comunismo, o que deixou sérias sequelas pro resto da vida, na época da ditadura militar no Brasil.
    Hoje não vivemos a covardia da ditadura militar, mas a da ditadura do poder econômico, cujo sistema não apresenta uma coerção descarada baseada no monopólio da violência, que é atribuído ao Estado (‘monopólio’ esse quebrado e imitado pelo crime organizado como você falou). Essa ditadura se baseia no poder do capital financeiro que opera via corrupção, mentiras de contrainformação, ocultação da verdade e obstrução da informação fiel e da justiça. Um exemplo: pouco importa se a prática de agricultura química vai causar câncer, ruptura endócrina e um conjunto de outras doenças graves nas pessoas, desde que o lucro seja gerado e garantido, a renda concentrada, e o crescimento sem limites rumo ao monopólio de mercado seja assegurado.
    Essa ditadura faz do mercado o centro de tudo, que subordina a política e governos e máquina de estado aos seus interesses, como Guerreiro Ramos (1989) em sua lucidez bem alertou, com sua Teoria de Múltiplos Centros. O "ajuste" às regras pode parecer que está tudo bem, que é evolução. Mas nada que não passe pela emancipação da consciência é.
    Ramos escreveu sobre a covardia do ponto de vista socioeconômico, das organizações. Você escreve da perspectiva da percepção, de uma foram bem abrangente. As organizações são o que são por que são feitas por gente. Gosto muito do que você escreve.
    Abraço

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