Inutilidade

Psicologicamente a vivência de ser rejeitado e assim se sentir, equivale a constatação de inutilidade. Incapaz de preencher requisitos do que é considerado bom, válido e útil, o indivíduo é expelido das relações por ele configuradas. Diversas traduções surgem para considerar e explicar esta vivência, desde às do seio mau (Melanie Klein) até às de "arianização".

A atitude de rejeitar está estruturada, geralmente, em contextos e estruturas socio-econômicas: são os preconceitos, as restrições, os bodes expiatórios, necessários à manutenção dos sistemas.

Perceber-se rejeitado atinge outras dimensões desde que surge um mediador, um filtro responsável por esta categorização. Não se aceitando, o indivíduo fica referenciado nessas vivências: é o autorreferenciamento. Ele busca ser aceito e geralmente se sente rejeitado, nada preenche suas demandas de aceitação. Criando metas e padrões onde tudo dará certo, onde ele será útil e bom, belo e aceitável, ele continuamente avalia, verifica e se sente frustrado, se sente falhado, rejeitado. Quanto mais se prepara, menos consegue e isto causa irritação, raiva que continuamente vivenciada estrutura depressão. Submetido aos desejos de ser aceito, esquece da própria problemática de não se aceitar e consegue assim transformar a vivência de rejeição em um deslocamento do próprio não se aceitar. Ao se rejeitar e por isso querer ser aceito, querer ser validado como alguém possível de qualquer coisa útil, boa e agradável, o indivíduo se desmembra, se pontualiza e anima-se ou deprime-se em função de resultados e circunstâncias favoráveis/desfavoráveis. Sentir-se rejeitado é sentir-se excluido, fora da humanidade. Lutar para ser aceito, para não ser rejeitado é concordar com critérios responsáveis por sua exclusão, é abraçar o universo social e relacional que o discrimina.

Quando, em psicoterapia, este processo não é configurado, não é globalizado surgem distorções decorrentes do reducionismo elementarista: inconsciente, instintos, configurações neurológicas, socio-econômicas e culturais; e se fala em culpa, repressão, complexo de inferioridade, problemas socias, desvios mórbidos, anomalias físicas como maneira e meio de explicar o sentir-se rejeitado.

O início do processo de rejeição é feito pelo próprio indivíduo em relação a si mesmo ao posicionar a não aceitação explicitada pelo outro e a partir daí construir seu "bunker" ou esvaziar suas bases, suas estruturas, criando abismos onde tudo fica por um fio. O posicionamento da rejeição pode se configurar em situações de prepotência ou de impotência, são polos do mesmo eixo. O extremo de acertos, regras e determinações é igual ao de fracassos, sensibilidades, medos, disforias ou dispersão inconsequente. Os primeiros geralmente se escondem em núcleos de autoridade ou saber fazer, os segundos se protegem através de dependências escravizantes que vão desde sistemas e famílias até drogas.

















- "A Colonização do Imaginário" de Serge Gruzinski
- "Narrativa da Análise de Uma Criança" de Melanie Klein


verafelicidade@gmail.com

Comentários

  1. Parabéns pelo artigo....Percepção....Conhecimento ....e relacionamento.O inicio do processo e rejeição é feito pelo próprio indivíduo em relação a si mesmo.A rejeição é um processo de ver-se naquilo.;;;

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  2. Aceitar que o outro não nos aceita pode ser estruturante.

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    1. Oi Augusto, isto que você fala é um dos alicerces da mudança, desde que todas as contradições sejam globalizadas: quando isto não ocorre são criadas pontualizações, fragmentações, consequentemente, posicionamentos. Abraço, Vera

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  3. É verdade, isoladamente isso poderia levar a um posicionamento oposto ao de não aceitar que o outro nos rejeita. Igualmente aprisionante.

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  4. Oi Vera,

    quando tu fala "O início do processo de rejeição é feito pelo próprio indivíduo em relação a si mesmo ao posicionar a não aceitação explicitada pelo outro", fiquei pensando nesse "outro". Seria ele o pai/mãe/substituto do bebê ou criança pequena?
    Pergunto isso porque continuo refletindo a respeito do teu livro sobre as conceituações. Tem um trecho (pag 59) que diz: "Resumindo: a atitude dos pais em relação ao filho é responsável pela estruturação de uma relação integradora, diferenciadora, ou de uma relação coisificante, desvitalizada, vazia. Quando os filhos são percebidos como outro, há aceitação do outro enquanto ele mesmo, do outro como figura, estabelecendo assim diferenciações do campo, que possibilitam percepção da realidade, vivência do estar-no-mundo, autodeterminante. Quando os filhos são percebidos como fundo, estão destinados à realização, manutenção ou modificação de situações, valores e atitudes dos pais, passando, portanto, a serem instrumentos dos mesmos, tornando-se objetos, receptáculos de amor, carinho, planos e metas;"

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    1. Oi Diego, no artigo falo da rejeição e o "outro" pode ser qualquer pessoa em qualquer fase da vida. O outro não é uma marca, significado ou selo, só existe "outro" em relação. Não vejo motivo para sua dúvida quanto à palavra "outro" citada no livro e que você comparou com o artigo! Abraço, Vera

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