Objetificação do relacional

As ambiguidades, as indefinições geram a necessidade de explicitar o sutil; é uma atitude responsável por dúvida, avaliação e consequentes necessidades de comprovação: especular, flagrar, classificar, fotografar garantem e sistematizam. A formação de símbolos, de ícones, nas suas diversas formas de imagem e metáfora tornam denso, tornam pregnante o relacional, encobrindo assim, as infinitas possibilidades dos processos, configurando-os como Boa Forma* e frequentemente criando distorções.

Hábitos são formados, novas histórias e demandas surgem, frequentemente geradas por distorções e enganos. Reivindicações e protestos costumam adensar e fragmentar possibilidades, quando ancoradas em posicionamentos causadores de maniqueismo entre bom e ruim, certo e errado, familiar e estranho, por exemplo. Estas divisões são destruidoras da temporalidade, da unidade dos processos. Transformar o existente em ponto de convergência, em referência de um sistema, cria posicionamentos destruidores da totalidade; as partes transformadas estabelecem novas percepções distorcidas, parcializadoras e sempre, ao transformar a parte em todo, maximizam o percebido. Esta reversibilidade perceptiva cria adensamento sonegador das relações implícitas nas sutilezas processuais.

Antropomorfizar, tomar a forma humana como padrão, é um exemplo destas convergências, é uma maneira de tornar próximo, tornar familiar o não semelhante, o diferente. Isto causa enganos e ilusões. Deuses, entidades mágicas são por este processo entronizados, assim como, já por ulterior desenvolvimento, idéias de superior, inferior e primitivo resultam de cogitações baseadas em antropomorfismo; é clássica a explicação dada por Platão para a formação e regulamentação da sociedade: os filósofos (superiores - cabeça) governavam, orientavam; os soldados protegiam e os camponeses (inferiores - pés) sustentavam, proviam. O corpo, a forma humana, era o modelo validado para criação do (corpo) social.

Atitudes etnocêntricas foram criadoras de visões compactas e isoladas sobre sociedades e culturas. Postular "inferiores" e "primitivos" como codificação de diferenças, foi uma maneira de facilitar, segmentar e dividir para afirmar os próprios modelos.  

Psicologicamente, viver neste universo densificado deriva da necessidade de segurança, resultado e sucesso; cifras, diplomas e anel de compromisso substituem o relacional. Abrigar, guardar, deter impõem caixas, gaiolas - espaços de segurança e garantia, que posicionam as vivências. Buscar a "pílula da felicidade", a droga que acalma, o reconhecimento que acha merecer, é também uma maneira de densificar, pontualizar em supostos inícios e esperadas soluções, é destruir matrizes relacionais, tessituras promissoras. Surge a causalidade criando divisões para tentar controlar as contradições. Na objetificação do relacional, o próprio espaço, o que está acima, o que está abaixo, o que melhora, o que piora é o mapa a ser organizado e seguido. A densificação sempre cria tijolos, futuros muros, muralhas que defendem, dividem e isolam. Antropomorfizar e simbolizar é exercer autorreferenciamento, é, no afã de ententer o outro através de comparações, negar toda a relatividade processual.

Descobrir o outro só é possível quando não existem modelos, paradigmas para abraçá-lo, captá-lo.

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* Boa Forma é a lei da percepção que diz ser mais pregnante (perceptivel) o já conhecido, o mais simétrico e nítido, por exemplo. É a percepção privilegiada pela pregnância da organização perceptiva. Exemplo: o velho que chora e se arrasta é percebido, geralmente, como vítima - mas pode ser um algoz. Hitler velho, seria um velho, mas era Hitler velho submerso na pregnante velhice, no caso, solapadora de realidade e vivência.


- "La question de l'homme et le fondement de la philosophie" de Didier Julia
- "Le sens du temps et de la perception chez E. Husserl" de Gêrard Granel


verafelicidade@gmail.com

Comentários

  1. Sensivel e Profunda Vera!

    Tenho, sigo e leio mais de 300 blogs, para ver como andam os pensamentos, os sentimentos, as relações e suas proprias interpetações de vida.
    No meio de tantos "escrivinhados" sempre tenho a surpresa, muito agradável, refinada, profunda, de ler algo que nos faz pensar em nós mesmos. Não por egoismo, mas por combatermos um pouco mais a hipocrisia e mediocridade.
    Bela manifestação de teus entendimentos e compreensões
    obrigado por comparlhar

    Abraços e afagos na alma do Sul

    José Carlos Bortoloti
    Passo Fundo - RS -
    www.epensarnaodoi.blogspot,com.br

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    Respostas
    1. Oi José Carlos,
      Muito obrigada pelo seu comentário estimulante e demonstrativo de que vale a pena questionar. Abraços, Vera

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    2. Nossa mente é repleta de ilusão e pode ser influenciada facilmente. Podemos sucumbir aos impulsos negativos e destrutivos que provém da sutileza da mente O Sutra do Nirvana contém um trecho que diz: “Torne-se mestre de sua mente, em vez de permitir que ela o domine”. (WND, vol. I, pág. 502.) Por isso precisamos de um farol para iluminar nosso caminho: A fé, não nos deixa influenciar por nossa fraquesa interior. Obrigada pela excelente leitura!

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    3. Oi Nice,
      Que bom que você gostou da leitura do artigo!
      Obrigada pelo seu comentário, mas, no meu ponto de vista, não existem estas separações: mente, self, fraqueza interior, impulsos negativos etc como explicação dos problemas humanos. O ser humano é uma possibilidade de ralacionamento que não se explica por elementos tipo mente, instinto, impulsos etc. Abraços, Vera

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    4. Obrigada pela oportunidade de dialogar com você.
      Para mim, a essência da vida é o extremo bem. Não existe separação do ser e o seu ambiente. É como a sombra e o corpo. Inseparáveis. O bem e o mal está dentro de nós. Tudo depende do nosso comportamento como ser humano. Se elevarmos os nossos pensamentos, palavras e ações, o nosso comportamento muda, o nosso ambiente muda. Isto é comprovado cientificamente. Não estou falando da cópia de um objeto existente, e se efetua mudanças nele. Estou falando de problemas humanos, seja no âmbito familiar, social, político etc. Diz o filósofo Dr. Daisaku Ikeda: A revolução humana de uma pessoa pode mudar sua família, a sociedade e até mesmo o mundo.
      Sou militante da paz, cultura e educação. Um abraço.

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