Incongruência

Todo empenho, objetividade e necessidade são neutralizadas quando situações incongruentes, inadequadas, surgem. Realizar o impossível, é impossível. Constatar este absurdo cria desespero ou gera impotência, tristeza, revolta, quando não se aceita o que está diante, o que está acontecendo. Esta vivência estrutura a constatação de que não se pode "apertar parafuso em papelão", ela liberta e às vezes possibilita autocrítica.

Pessoas inconsistentes, oportunistas não se responsabilizam pelo que fazem. É frequente encontrar tais pessoas no âmbito profissional; não adianta esperar que elas adquiram responsabilidade, já foram treinadas para despistar, não se responsabilizar pelos erros decorrentes de enganos gerados pelas falsas imagens veiculadas; é o conhecido "cara de pau", nada o atinge, é blindado a qualquer coisa que não seja a própria conveniência, a própria vantagem.

Nos relacionamentos íntimos, esta blindagem, as mentiras e irresponsabilidades produzem muito sofrimento aos que estão em volta. Ser enganado por quem significava confiança absoluta - amigo, marido, pai, mãe, por exemplo - é terrível, mas gera manipulações tais que até os abusos (dos sexuais aos econômicos) são justificados, tolerados e distorcidos. Conviver com quem não assume os próprios atos e as implicações dos mesmos, é contribuir para a manutenção do cinismo, da dependência, do medo e desumanização. A criação de descontinuidades nas relações  é transformada em uma forma de dividir para controlar, de ter várias âncoras, posições passíveis de serem utilizadas.

O desespero humano aparece assim, quando, curvando-se às vantagens, se nega as próprias opressões aviltantes. Muitas vítimas reproduzem sobre outros, as mesmas agressões que receberam de seus ofensores. Submeter o outro, repetir o que lhe foi imposto, é para algumas pessoas, alívio, melhora e prazer.

A história do Brasil é cheia de fatos explicitadores destas divisões, destas contradições, de incongruências como as que se observavam na sociedade escravocrata, por exemplo, quando um negro, ex-escravo, liberto e endinheirado, comprava e mantinha escravos para sua lavoura ou para seu comércio.

Incongruência, paradoxalmente, é um dos fatores que mais acomodam e adaptam. Questionar estas quebras, estas divisões e restabelecer possibilidades, exige um questionamento que leve à reversibilidade perceptiva e consequentemente à mudança.


















- "Escravos brasileiros do século XIX na fotografia de Christiano Jr"
- "Os vivos e os mortos na sociedade medieval" de Jean-Claude Schmitt



verafelicidade@gmail.com

Comentários

  1. Uma palavra: sociopatia.
    Seu texto exemplifica o porquê da falta de adaptabilidade de sociopatas num contexto não violento e de oportunidades. A idéia da inconsistência é relevante, mas não deve definir uma pessoa, que pode ter problemas muito mais sérios e que talvez não mereça mais uma rotulação, não acha?

    http://eusociopata.blogspot.com.br/

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    1. Cinza G. tudo vai depender de como se conceitua, inclusive a psicopatia; em última análise, no dia a dia, o mundo se divide entre os que transformam os problemas em justificativas e os que não o fazem assim. Esta é a grande questão que define oportunismos, terapias, religiões, drogados, etc

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  2. Querida Vera Felicidade;
    Fato constante,cada vez mais frequente em nosso meio;Em qualquer seguimento...
    Infelizmente, estamos diante, ou andando, com pessoas com esse tipo de personalidade, para mim doentia e perturbada;Pior que em muitas situações, conseguem nos atingir de alguma forma!!
    Vamos esperar que posteriormente, tenhamos em mãos, mentes;os famosos antídotos,para usarmos em prol de nós mesmos...
    Um abraço.

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    1. O questionamento traria mudanças e as situações ficariam mais congruentes. Abraços, Vera

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  3. A verdade é que desde que nascemos, "aprendemos com nossos pais" Os que conseguem diferenciar o que é certo do errado e principalmente se espelhar, discernir e trabalhar psicologicamente o seu comportamento, conseguem dar um passo a frente.

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    1. Raquel, além da família, existe sociedade, cultura, tudo isto submetido a um processo que sempre possibilita teses, antíteses e sínteses. Reduzir às figuaras parentais, implica em um reducionismo causalista, que embora "explique" não apreende a totalidade do ser no mundo. O ser está no mundo, aberto a infinitas possibilidades que transcendem seus limites (núcleos estruturantes) ou submetido aos mesmos, através da satisfação de suas necessidades de sobrevivência.

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    2. Ou seja repetir as mesmas grosserias que recebi de professores, de patrões, de amigos, de maridos e até de filhos. Todas as experiências da vida. Realmente fui muito restrita a quatro paredes. Um abraço.

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    3. O importante é que você percebe tudo isto, critica e como diz, dá "o passo a frente". Abraços.

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  4. O curioso é que pessoas com esse tipo de personalidade, buscam e se envolvem com pessoas de baixa autoestima e sentem um prazer cruel em pisoteá-las e diminuí-las para ver até onde elas suporta . E a vítima, já fraca e insegura da sua força, não reage, aceita e por vezes justifica. É como se pessoas assim fossem alimentos para eles. Ale de não sentir culpa, eles transferem a culpa para o parceiro fazendo com que ele acredite que o relacionamento não vai bem por sua causa. E abusam emocionalmente e psicologicamente, muitas vezes o chamando de louco e o fazendo realmente acreditar que aquilo não está acontecendo. Que ele está fantasiando e dramatizando. Não desejo um relacionamento com um sociopata nem mesmo para os meus inimigos.

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    1. Oi Vanessa, tudo o que você fala é perfeito como exemplificação da não aceitação; as pessoas de baixa autoestima, como você diz, são exatamente as que não se aceitam e ficam presas fáceis de qualquer manipulação. Você descreve bem este processo. Quanto ao que se considera sociopata, é também explicado pelos processos de não aceitação. Os sociopatas também não se aceitam, se seguram em imagens, aparências, status e atributos que os resguardam e protegem, parecendo pessoas descoladas, fortes e poderosas. É tipo a luz que atrai mariposas ou ainda, exemplo disto vemos, de uma maneira leiga enquanto enfoque psicológico, no seriado "Dupla identidade". A descrição que o meu artigo suscitou em você, está legal.
      Abraço, Vera

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