Comunidade Virtual - Reversibilidade
O homem continua o mesmo e quando age pela necessidade de ser aceito
transforma as mudanças tecnológicas em mais uma plataforma, mais um
palco de alegorias. Nesse palco, nesse contexto, a vivência de
transitoriedade se impõe: os relacionamentos são imediatistas. Nesse
sentido, os relacionamentos, sejam no ambiente físico (offline) ou no virtual (online), são vinculados apenas ao instante de interação.
O que é identidade na comunidade virtual?
Identidade
é um tema clássico em psicologia, filosofia e antropologia. As questões
levantadas em relação à identidade virtual não são novas ou específicas
do mundo virtual, apesar de no ambiente virtual essas questões serem
urgentes e práticas, não partem de preocupações teóricas, pois, mais facilmente homens criam perfis femininos e vice-versa; adolescentes se passam por
profissionais maduros; portadores de doenças buscam informações médicas,
acreditando que sejam de fonte fidedigna, por exemplo; além de questões
de reputação de perfis “autênticos” (correspondentes tanto a individuos
que se colocam no ambiente virtual com sua identidade legal, quanto a
indivíduos famosos ou conhecidos publicamente em uma dada sociedade).
Sinais para confiabilidade de identidade são poucos e insuficientes no
mundo virtual mas eles existem (emails, fotos, estilo de expressão,
cruzamento de dados, referência de terceiros etc). Neste ambiente,
reputações virtuais são estabelecidas e questionadas.
Ainda hoje,
muitas pessoas entram no ambiente virtual com a atitude básica de que
seus interlocutores sejam quem pretendem ser e aqui temos um problema
crescente e atual: a natureza controversa da identidade virtual, gerando
enganos e posições que variam do simples abandono da interlocução à
desestruturação psicológica do enganado, muitas vezes com consequências
graves como foi o famoso caso Megan Meier nos EUA, adolescente de 13
anos que cometeu suicídio a partir de interação com um interlocutor,
digamos, “falso”. As consequências psicológicas nefastas da interação
com identidades enganosas na internet não se limitam a adolescentes
(talvez as vítimas mais vulneráveis), mas atingem indivíduos de várias idades e
formação. Este tema vem ocupando psicólogos em muitos países.
Encontramos
inúmeras variedades de identidade enganosa nas redes sociais, algumas
são muito disfarçadas e danosas para indivíduos e comunidades, outras se
referem apenas ao dono do perfil sem prejudicar ninguém, outras ainda
são claramente desafiadoras, criadas para provocar uma impressão ruim,
como os Trolls, muito encontradiços em discussões políticas, mas
não só aí. No caso de um criador de várias identidades virtuais, ou
seja, um indivíduo com vários perfis virtuais, enfrentamos questões de
gênero - isso é comum quando sexo é o tema predominante da interlocução - um
homem que cria um perfil de mulher ou vice versa, a interlocução pode
envolver sedução com consequências psicológicas quando ocorre o
desmascaramento, a constatação do engano; enfrentamos também, questões ideológicas com perfis
criados para promoção ou difamação de pontos de vista políticos e pontos
de vista religiosos, por exemplo; questões criminais com perfis criados
para seduzir, atraindo para encontros que envolvem perversões sexuais,
roubo, sequestro, chantagem etc. (e além do dano psicológico, temos aqui,
danos físicos, materiais); e encontramos ainda, a questão do prazer mórbido da manipulação do outro, que pode ser o único objetivo do perfil ou apenas mais um elemento nos perfis citados acima.
Principalmente nas interações virtuais
interpessoais e não públicas (emails, por exemplo), a identificação e
confiança na identidade é fundamental na motivação para interação.
Acontece que, como dissemos, um indivíduo pode ter tantos perfis
virtuais quanto queira, e como afirma Judith Donath - conceituada
estudiosa desse tema - “quando dizemos ‘o indivíduo pode ter…’, quem é o indivíduo? Naturalmente é o corpo diante do teclado”.
Para um psicólogo é tão importante entender o que acontece com quem se
descobre enganado na interlocução com alguém de identidade forjada, quanto
entender o que acontece com o indivíduo físico que cria varias identidades virtuais: no mundo físico a norma é um corpo, uma
identidade, no mundo virtual não existe esta correspondência.
O
perfil virtual é tanto voluntário quanto involuntário. É notório que na
internet existimos como dados de informação e não como corpos. Um perfil
ou uma identidade virtual é composta pelo que deliberadamente decidimos
expor: design (com ou sem fotos e web-câmeras) e descrições contidas em um site
pessoal ou em um perfil de rede social, mas também por dados
involuntários, rastros que deixamos no ambiente virtual, como:
históricos de buscas em catálogos como Google, por exemplo, escritos, comentários em blogs
e interações em redes sociais, padrões de viagens, padrões de consumo, processos judiciais
disponibilizados pelos poderes públicos, arquivos médicos etc. são,
portanto, dados acumulados de exposição voluntária e rastros
involutários buscados a partir do interesse da audiência. Em outras
palavras, a identidade virtual foge ao controle do perfilado, é também
composta pelo interesse de terceiros. Como bem afirmam antropólogos e
outros pesquisadores do ambiente virtual, isso não é radicalmente
diferente do que sempre ocorreu no ambiente físico: uma fotografia
transmite mais do que uma imagem; quem olha um retrato vê, alí
representado, status social por meio de vestimentas e ambiente em
volta, infere época histórica e conotações de personalidade a partir de
expressões faciais etc.
O ambiente virtual amplifica enormemente
a interpretação dos perfis pela insinuação
estruturante do campo perceptivo - Lei da Closura -, as fragmentações,
os espaços vazios, insinuam complementações, sendo essas geradas por
desejos, frustrações e necessidades. Existe, também, um elemento
invasivo que desafia as questões de privacidade como a entendíamos no
passado. Os rastros de nossas ações estão sempre à mão de quem quiser
consultá-los, são enorme fonte de dados utilizados na composição de
interlocuções pessoais, além de serem também, produtos comercializados entre redes (Google, Facebook, Twitter etc.) e empresas interessadas em padrões de consumo, e finalmente, dados sujeitos a monitoramento político.
Os estudos da identidade no ambiente virtual, os
temas a ela relacionados, tendem a uma visão de especificidade que não
se sustenta: nem o fato dessas identidades serem formadas por dados e
não por corpos, tampouco a facilidade em criar imagens ou perfis falsos,
levam a uma radicalização de diferenciação na definição de identidade
online e identidade offline. Os dois ambientes não passam de esferas nas quais transitamos, agindo de maneira semelhante em um e outro,
concordante com nossas estruturas psicológicas. Em ambos estamos sujeitos a controle de terceiros, em ambos é possível construir imagens, em ambos exercemos
comunicação, corremos riscos, interagimos descuidadamente ou não com
nossos interlocutores. Por exemplo, na interação entre um perfil
enganoso e um perfil legítimo, apesar da ação deliberadamente
manipuladora do “enganoso”, existe a recepção do “honesto”. Nas palavras
de um famoso Troll americano em entrevista no New York Times: o interlocutor do enganoso é “cumplice” na interação enganosa porque “se deixa enganar, alimenta o engano, expõe carências, parte de uma atitude ingênua de crença”.
É certo que o ambiente virtual facilita a atuação de enganadores e
aproveitadores, mas essa é uma atuação maldosa semelhante à que sempre
existiu no ambiente físico. O ambiente virtual a facilita pela falta de
sinalizadores de confiabilidade, no entanto, ele é apenas mais um
contexto no qual se desenrolam relacionamentos estruturados em necessidades
ou possibilidades relacionais, em não-aceitações ou aceitações.
- “O Filtro invisível - O que a internet está escondendo de você” de Eli Pariser
- “Matrix, bem-vindo ao deserto do real” - coletânea de William Irwin
verafelicidade@gmail.com
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