Faz de conta

Estabelecer objetivos que se julga realizadores e satisfatórios e achar que alcançá-los significa segurança e tranquilidade é um faz de conta. Toda vez que se pretende realizar ou alcançar alguma coisa, se busca suprir um desejo, uma necessidade. Este esforço de realização, este empenho, transporta o cotidiano, o dia a dia, para depois. O futuro, através do desejo que se precisa que aconteça, invade o presente, e como tal, cria o vazio. O presente atropelado, esmagado pelas expectativas, é apenas o ponto de tensão. Voltados para o depois, não se vê o que está acontecendo, pois que tudo é percebido no contexto do que vai acontecer, do que se deseja que aconteça. O cotidiano, a vida é lançada para depois, os marcos variam desde o dia do casamento à formatura do filho e até ao ficar esperando ganhar na loto, por exemplo.

Quando não se tem mais o que desejar, o que esperar, espera-se, teme-se perder coisas: o que foi conquistado, ter prejuízos e mesmo a morte. Adiando sempre para depois, vivendo em função de desejos e realizações responsáveis por criação de solos férteis para construir vida e poder, os indivíduos se transformam em operadores, removedores do que lhes atrapalha, e assim, acreditar em alguém ou em alguma coisa, é considerá-lo capaz de dar ajuda; a própria crença nas divindades realiza propósitos utilitários: “Deus vai me ajudar”, “Deus está comigo” são resumos de seus pensamentos, suas preocupações e ligações com o divino. O autorreferenciamento tudo esfacela, sistemas e processos são filtrados, tudo deve convergir para realização dos próprios desejos, tanto quanto para evitar os próprios temores e dificuldades. Sentir-se merecedor e privilegiado é uma vivência frequente dentro do faz de conta da realização de objetivos adiados.

Buscar a paz ou qualquer outra coisa, é estabelecer guerra, tensão, conflito, desde que se transforma o cotidiano, a própria vida, o presente, em um palco onde são encenadas circunstâncias sem vínculos, êfemeras e distantes do que está se pretendendo, do que está se buscando. O fazer de conta começa ao negar limites, negar evidências, negar impasses que se antagonizam com regras, desejos e metas. Psicologicamente, fazer de conta é alienar-se de si mesmo, quando não se sabe o que fazer com as próprias questões. Este processo só é possível através de omissões, mentiras que criam aparências, imagens capazes de esconder e camuflar. Enganar o outro é a melhor maneira de se esconder, mas também é uma forma de negar a si mesmo; no curto prazo é uma afirmação vista como positiva, esconde deméritos e problemas, no longo prazo é destruidora de espontaneidade possibilitadora da convivência com o outro.

Fazer de conta é construir impossibilidades, obstáculos, sinalizações que isolam o ser humano de seu referencial básico, fundamental e vitalizador: o presente - suas infinitas e limitadoras configurações, responsáveis pela dinâmica do estar no mundo com os outros e consigo mesmo.



- “A Força das Idéias” de Isaiah Berlin

verafelicidade@gmail.com

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