Diferença e estranheza

Diferença e estranheza geralmente são estabelecidas por comparação. Entretanto, esta regra é quebrada, dispensando comparação quando surge o diferente enquanto raro, único, sozinho em uma dada situação. As relações de quantidade e qualidade se impõem na apreciação de diferença e de igualdade. Variação de aspecto, forma e configuração, se muito frequentes, estabelecem campos: os do tipo X, outros do tipo Z, criando também critérios do que é pior, do que é melhor. Estes critérios, por sua vez, se apoiam em outros para estabelecer o que é bom e o que é ruim, por exemplo. Quando existem preconceitos e discriminação racial nas sociedades com predomínio de população negra o branco é ruim, tanto quanto o negro não presta nas sociedades onde se discrimina o ex-escravo ou o ex-colonizado. São os aspectos das diferenças, carregando em si, estruturas sociais e econômicas, sendo, através delas, avaliados e julgados.

Não foi sempre assim. Houve um tempo no qual o diferente se impunha por si mesmo. Nada lhe era agregado para permitir comparações. No Egito, as convulsões repetidas transformavam seus portadores em indivíduos sagrados, percebidos como objeto da atuação divina. Hoje em dia, são caracterizados como epilépticos, fazendo parte de outro grupo; já não são receptáculo da ação divina. Na Africa negra, na Nigéria, lençol yorubá, os albinos - frutos de mutação genética, explicação desconhecida à época - eram percebidos como marcados por Deus eram os filhos de Oxalá.

É interessante como a aceitação do diferente implica na não repetição do mesmo. Quando a frequência, a repetição se faz presente, já não se pode falar em raros e privilegiados, em enviados de deuses, já não são estranhos, são encaixados em categorias que os tonalizam como doentes, como marginais, ou como devendo ser aceitos, não podendo ser discriminados.

Atualmente, o diferente, o estranho é o não catalogado ou catalogado em padrões não divinizados, em padrões não aceitos. Diferente, estranho é tudo que não foi institucionalizado, é qualquer coisa que destoa do estabelecido ou do esperado.

O considerado estranho, diferente, quando incluído, quando não desconsiderado e destruído, abre perspectivas para apreensão dos limites e das ultrapassagens, das superações e realizações das quais o ser humano é sempre capaz. Ser diferente não é ser a “ovelha negra do rebanho”, ser diferente é ter características, atitudes próprias. É a diferença que cria a transformação, a mudança da própria vida, dos conceitos, tanto quanto o que permite abranger e descobrir realidades que mantém o humano em movimento, no caminho da realização e satisfação.

Não havendo contexto valorativo na percepção das diferenças, tudo é percebido como aspectos do homem, da trajetória de sua humanidade: não traz marcas divinas, nem destoa de padrões, apenas mostra, demonstra suas infinitas possibilidades exercidas ou falhadas.

Quebrar posicionamentos, mudar paradigmas, revolucionar, é o que se coloca para o ser humano a cada dia, a todo momento. Seguir a maioria, apagar diferença e estranheza é uma maneira de atingir reinos e nirvanas enganadores.


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