Ultrapassagem do próprio limite

Illustration by Elizabeth Lada

 
Confiar é ultrapassar os próprios limites ao estendê-los para o outro. Isso é possível quando se amplia o conceito de eu, quando se percebe o outro como continuidade de si mesmo. É muito difícil esse processo quando se é delimitado por conveniências, território próprio e resultados necessários.

Nas relações familiares, nas quais geralmente impera a não aceitação, os filhos são criados e educados em função de referenciais outros que não os da própria individualidade, mas sim os de para onde os mesmos devem ser endereçados. A família, antes de qualquer coisa, é um grupo. Esse grupo existe para realizar objetivos e funções ou existe por encontros construtivos, semelhanças, sintonia e sincronicidade, sem convergência nem divergência. As figuras líderes, as autoridades provedoras, pai/mãe, já estabelecem referenciais que submetem a igualdade e a harmonia. Desde cedo o filho é estimulado a ocupar o melhor lugar, a evitar ser submetido e ultrapassado pelos outros. Nesse contexto, confiança é o que é adequado quando uma série de parâmetros e protocolos são atendidos: desde o comer direitinho às boas notas escolares, além da beleza, elegância, inteligência e força apresentadas. Tudo conta para o bom cadastro, o crédito, o estabelecimento de confiança. Desde cedo se aprende que confiar é ter uma senha de acesso única e garantida. Essa instrumentalização do processo, da intimidade e vivência cria compromisso. Confiança, assim, se transforma em compromisso, por isso se confia em quem está submetido, comprometido. O ato livre, a ressonância do encontro se transforma em dependência. Quanto mais massacrado e controlado, mais confiável para realizar desejos e apelos.

Nos relacionamentos afetivos, familiares e amorosos, a confiança enquanto compatibilidade sincrônica é fundamental. Cria legitimidade, é genuína, não decorre de admoestação, controle, regras e dúvidas, pois é estabelecida na certeza que o outro está aqui e agora, inteiro, sem estar acompanhado das inexatidões, sem meias palavras, segundas intenções e meias verdades.

Confiar é arriscar por estar junto, por perceber os mesmos horizontes e contexto. Confiar é poder caminhar, pular, ultrapassar e sempre ter a referência do outro como a própria e vice-versa.



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