O descartável é definitivo



O resíduo cria novas realidades e congestiona processos. Freud foi eloquente quando mostrou a pressão exercida pelo dispensado, o descartado, o recalcado. Seu constructum - o inconsciente - permitia abrigar tudo e, quase por entendimento/contradição, era também um resíduo que tudo abrigava. Oximoro polêmico e responsável pela alienação na visualização dos processos psicológicos, na apreensão do humano, mas que foi muito útil como lata de lixo, como trash fundamental a todo sistema.

O trabalho escravo, o trabalho não remunerado ou mal remunerado (exercido principalmente por mulheres) é também um resíduo que suporta e mantém o sistema capitalista. Ganha-se muito mais do que se paga a empregados, e além disso se exerce controle, incentivando, por exemplo, instituições religiosas que permitem salvação, acenando com a vida eterna, pois isso é um descartável que configura densidade e apoio para os sobreviventes submetidos às pressões alienadoras e exploradoras. Assim, quanto mais se joga fora, quanto mais resíduo existe, mais se destrói e também mais se cria, pois novas ordens surgem.

Abrir mão, prescindir, descartar é estabelecer novas configurações. Da renúncia ao perdão, do não mais utilizar ao não mais segurar e deter, chegamos até a liberdade do estabelecido, às novas percepções de velhas questões. É a dialética, a reversibilidade, o não acúmulo de objetos, de lucros e vantagens, propiciando reconfigurações de tempo, espaço, lucros e prejuízos.

O aparecimento de novas realidades, por meio da recuperação do perdido, da recuperação do encontro estabelece novo sentido ao descartado: ele se torna o padrão de mudança definitivo enquanto descoberta de novos espaços, configurações e sentidos. Ampliar perspectivas, desnaturalizar o significado do suposto e proposto é descoberta, é mudança. É o abandono do resíduo, do descartado que cria novas condições, novas perspectivas, novas maneiras de perceber o outro, a si mesmo e ao mundo, estabelecendo, desse modo, dimensão definitiva para novas cogitações. O processo terapêutico, por exemplo, ou o relacionamento enquanto presente é sempre transformador de significados e demandas, é o que transforma problemas em soluções quando os mesmos são questionados e enfrentados.

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