Mentiras são necessárias?

 


 

“Se privar uma pessoa comum de sua mentira vital você também a privará de sua felicidade”

 - Henrik Ibsen -

 

Lendo O Pato Selvagem, de Ibsen, pensei nessa verdade/mentira. A ambiguidade da situação, uma ambiguidade quase quântica que é gerada pela própria colocação do problema. A mentira, no caso, é considerada por Ibsen como vital, isso porque ele acredita que através da mentira os próprios sonhos são realizados.

 

Acontece que a mentira exime a culpa, tanto quanto esconde e amordaça a impotência. E sendo assim como afirmo, fazer de conta que tem condição, quando não se tem, não é salvador, pelo contrário, é aniquilador. Essa pessoa sem sua mentira é apenas uma pessoa com sua realidade - provavelmente significadora de frustração, recheada de medos e vacilos. Sem a mentira ela percebe seu problema, e ao percebê-lo ela tem condição de não o suportar. Ao contrário, quando tolera se desumaniza, se aniquila. Ficando privada da felicidade construída na mentira, ela percebe seu vazio, sua desonestidade, seu faz de conta e isso aceito a faz crescer, se transformar em um ser humano com problemas embora sem felicidade. Obviamente o melhor é a felicidade em lugar dos problemas, entretanto o que existe, o que é, o que significa, são problemas. Sua felicidade não existe, é mentira, ilusão. É Alice no país das maravilhas, sempre criança.

 

Ser ou não ser feliz não é a questão, mas mentir ou não mentir é altamente problemático, pois usurpa, inventa, finge, engana. Feliz ou infeliz é o indivíduo com ele próprio, entretanto, mentir ou não já é o indivíduo com o outro: é manipulação, é trambique e sonegação do real. Acréscimos e decréscimos significam na relação com os outros, enquanto na relação consigo mesmo é o engano, a imagem, o faz de conta que aniquila qualquer possibilidade de estar-no-mundo-com-os-outros inteiro, feliz. Nesse sentido, privar da mentira é saneador. É o início do processo do estar-no-mundo-com-o-outro, é consistência, é perspectiva de mudança.

 

Às vezes a manutenção da mentira substituída pela percepção da quebra dos sonhos, da impossibilidade de realizá-los, do fracasso, da falta de sentido e do vazio, se torna revelação, luz clara, libertação.

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