Parrhesia – falar a verdade
Relembrando os gregos, mais especificamente Eurípedes, o poeta trágico autor de Medeia e Electra, falar a verdade, ter coragem de falar francamente é parrhesia. Palavra grega que significa essência, falar tudo ou falar livremente (pan = tudo e rhesis = fala). Não é a simples liberdade de expressão, é a coragem de dizer a verdade, mesmo correndo riscos pessoais, é mostrar o que acontece, explicitar o implícito. A noção de parrhesia foi muito divulgada na segunda metade do século XX por Foucault, principalmente quando ele falava do cuidado de si, enfocando a coragem de falar a verdade como uma das características básicas no comportamento social.
Considero que a primeira exigência ou condição para falar a verdade, para exercer integridade é não estar comprometido com resultados, não estar buscando objetivos que exerçam o ocultamento do que ocorre. Ao mostrar, ao falar a verdade, se abre o leque do que está ocorrendo, se apreende motivações, consequentemente, contradições, arranjos e acertos. Descobrir e mostrar falhas, só é possível se houver honestidade.
É possível apreender contradições quando existe autonomia. Não estar comprometido com metas, com desejos e ambições, possibilita a clareza de apreender o que acontece, estruturando a honestidade, reprodução exata do que está acontecendo, e que muitas vezes é bem diverso do que se deseja mostrar como ocorrência, como exemplo do que acontece. A invasão de propósitos – objetivos a atingir – gera anseios, desejos de cooptar e esclarecer os acontecimentos, filtrando-os, ampliando-os por lentes e instrumentalizações próprias. Tudo vira modelo, o que se deseja é o bem-estar próprio e do outro, e assim, se joga fora o que acontece para que não deprima, nem amedronte, por exemplo. Assim são delineados os sonhos: o grande amor, a casa própria, o país rico, o povo feliz.
Expressar-se com coragem é sinônimo de evitar o que anula a evidência. Abraçar o que ocorre, estabelecer antíteses que o situem no aqui e agora é o que se exige de estar vivo, existindo no mundo com os outros. Essa obviedade é solapada, destruída quando as muralhas, castelos e paraísos de sobrevivência são construídos. Falar a verdade, ter autonomia, algumas vezes é considerada uma atitude quase suicida. Não é à toa que se fala em “sincericida”, isto é, o que se suicida, se arruína por falar a verdade, assim como também ameaça os outros.
A exigência de cuidar da própria imagem, de não se arriscar e manter medo e conveniência, é, na nossa sociedade de bem-estar e busca de felicidade, uma regra, um princípio fundamental a se exercer. Nesse contexto, vence quem mente, esconde, camufla e evita confrontos, ou quem os cria para enganar, governar e impor seus propósitos. Vencer, conseguir, confrontar são os determinantes da relação com o outro, com o mundo. É exatamente assim que se estruturam as metas, os desejos e posicionamentos. Nesse contexto estruturado pela sobrevivência, nada é mais pernicioso do que a verdade. Falar a verdade é se expor, é enfraquecer e deixar claro seus propósitos e objetivos. É uma visão alienada, comprometida que estabelece desconfiança e medo. Essa omissão ou ocultamento do que existe, e das próprias possibilidades, é estabelecida pelos sonhos, desejos e inveja, e assim é construída maldade e despersonalização.
Falar a verdade, ter coragem de expressá-la é estar no mundo, caminhando, substituindo a imobilização. Quando se tem como referencial os próprios medos e desejos (as não aceitações) não existe o que acontece enquanto acontecimento, existe o que acontece como sinalização positiva ou negativa para os próprios interesses. Nesse contexto, verdade é sempre uma intrusa que deve ser escondida.
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