Por que se distorce? Por que se unilateraliza?
Ilhados na sobrevivência os seres humanos percebem o que está em volta de si através de valores em função da satisfação ou insatisfação de suas necessidades (demandas). Uma das resultantes imediatas deste processo é a transformação do outro em instrumento, ferramenta, meio para satisfazer desejos (deseja-se o que falta) e necessidades (é o que permite sobreviver). O outro passa a ser caçado e utilizado para apoio e prazer.
A distorção é resultante da manutenção de posicionamentos, da quebra da dinâmica relacional do estar no mundo. Inicia-se assim, um processo que se caracteriza por buscar metas, por autorreferenciamento etc enfim, distorção perceptiva, unilateralização.
Neste contexto, tudo que se percebe, consequentemente o que se pensa - pensamento é prolongamento da percepção - é binário, mecânico, limitado: é bom? É ruim? Serve? Não serve? Este referencial, esta matriz verifica e avalia tudo que ocorre. Qualquer situação nova vai ser assim examinada. Nada é feito ao acaso, nada é feito por fazer. Diletantismo é considerado loucura, é considerado perda de tempo.
Apoiados nestes critérios, observam e avaliam o que leem, o que vêm, o que ouvem, o que propicia prazer. Sabem o que deve ser buscado e o que deve ser evitado. O que não couber no esquema tem que ser adaptado: fragmentam, dividem para manipular.
Esse processo é esvaziante, aliena do presente, leva à criação de metas, busca de objetivos como: "paz interior", "realização de sonhos" etc.
Nesta nebulosidade, nada é claro, nada é luz, tudo é distorcido, misturado, confuso. Não há apreensão de totalidades, só existe luz no fim do túnel e esta tem de ser buscada.
Quando o que acontece é percebido em contexto diverso do que está estruturado ou acontecendo, ocorre distorção perceptiva. A percepção do percebido é a categorização, o saber que se percebe. Quanto mais relacionado ao percebido está a percepção do mesmo, maior a globalização; quanto mais distante - temporal ou espacialmente - maior a fragmentação, a parcialização. Nesses casos, para nomear, significar tem que se preencher os vazios, somar as partes. Este processo é a distorção perceptiva responsável por preconceito, divisão, oposições e semelhanças.
"Obras Completas", Sigmund Freud
"O Homem e seus símbolos", Carl Gustav Jung
verafelicidade@gmail.com
Interessante e bastante contundente por que conheço muitas pessoas e eu me incluo um pouco nelas que pensam na paz como um ideal. Contraditoriamente isso poderia tirar mais a paz do que simplesmente deixar-se viver o presente.
ResponderExcluirÉ Arliss..."Se queres paz, prepara-te para a guerra" Rsrs.
ResponderExcluirVera, achei incrível seu texto. Deu vontade (urgente rsrs) de reler seus últimos livros.
Bjs,
Ioná.
Exatamente Arliss, você apreendeu as contradições que enganam quando não percebidas, criando os clássicos dualismos geradores de sonhos, como o que você falou da paz como ideal.
ResponderExcluirAbraço
Que bom Ioná, obrigada. Boa leitura! rsrsrs.
ResponderExcluirBeijos
Vera, que texto incrível!
ResponderExcluirÉ tão fácil pensar de forma maniqueista, é tão fácil pensar que os problemas pessoais se originam nos outros (família, educação, valores sociais transmitidos, classe social, relacionamentos infantis traumáticos etc); é tão fácil acusar; é tão fácil buscar escapatórias utópicas... Difícil é perceber isso que você afirma: "A distorção é resultante da manutenção de posicionamentos, da quebra da dinâmica relacional do estar no mundo. Inicia-se assim, um processo que se caracteriza por buscar metas, por autorreferenciamento etc enfim, distorção perceptiva, unilateralização."
É admirável a sua precisão e a lógica de todos os seus escritos. Esta explicação de por que se distorce, de por que temos problemas, por que somos neuróticos afinal, sem lançar mão dos maniqueísmos vigentes, é de extrema coerência com tudo que você desenvolve e queria lhe perguntar algo que sempre me surpreende: em meio a este mundo do consumo, das imagens, das avaliações, da sobrevivência como você diz, como é possível que ainda se vá a museus, que se emocione com um quadro, uma dança, com uma música, com uma experiência religiosa, como é possivel que ainda se apaixone por alguém? Será tudo comportamento comprometido? Pergunto sobre a emoção genuína nestas situações e não da sua utilização por algum fim (educação, imagem etc). O que é isto que se mantém imaculado até mesmo no sobrevivente?
Abraço
Puxa, Ana, ADOREI essa pergunta! Bjos.
ResponderExcluirAna, também estou aguardando a resposta de Vera, mas gostei tanto da sua pergunta que quis comentar. Não acho que tudo seja "comportamento comprometido", existem emoções verdadeiras, paixões genuínas. Apesar de toda a neurose, as pessoas guardam em si pelo menos uma gota de humanidade e é isso que permite a transcendência. Passei a entender isso depois de conhecer o trabalho de Vera.
ResponderExcluirAbraços.
Ana, obrigada pelas palavras lúcidas. O comentário de Natasha responde ao que você perguntou. Guimarães Rosa completa a resposta para você quando em "Barra da Vaca" (Tutameia) diz: "Felicidade se acha em horinhas de descuido".
ResponderExcluirA paixão, a empolgação existem sim, sua intensidade é igual para todos: é paixão, quando ocorre. Mas a persistência, a continuidade, dura alguns segundos ou poucos minutos ou alguns dias, anos a depender das estruturas que a vivenciam. Quanto maior a divisão, a fragmentação, mais fugaz a paixão, mais volátil e sem marcas é a vivência. O sobrevivente tem de imaculado a possibilidade de se relacionar, de poder transcender as próprias necessidades.
Abraço
Natasha, muito bem lembrada a sempre existente possibilidade de transcendência.
ResponderExcluirBeijos
Obrigada Clarissa e obrigada Natasha, um abraço para vocês.
ResponderExcluirVera, essa é a resposta que eu "precisava" ouvir: "o sobrevivente tem de imaculado a possibilidade de se relacionar" ou, como você sempre escreve: "a essência humana é possibilidade de relação"; tudo isso não só responde minha pergunta, como acho que é uma maravilhosa resposta ao modismo da medicalização para disturbios comportamentais, uma resposta para a "crucificação" dos ditos psicopatas como se fossem seres sub-humanos, exilados da humanidade. Sua teoria nos permite olhar de frente a dita humanidade em todas as suas facetas sem exclusões, sem concessões, sem divisões enfim.
Abraço
É verdade Ana, procuro desenvolver conceitos unitários a fim de neutralizar divisões que apenas tipificam, unilateralizam, distorcem. Tudo é um, é a única maneira de globalizar, isso também não pode virar uma regra, senão caímos em dualismos, por incrível que pareça!
ResponderExcluirA questão da psicopatia, da medicalização, são questões contemporâneas que já se transformaram em crivos geradores de novas divisões e que portanto, "ajudam" as pessoas a entender o que ocorre em volta delas.
No livro "Desespero e Maldade" escrevi: "Não há um bem, não há um mal; a maldade não resulta de condições sociais e econômicas adversas, tanto quanto não é um instinto humano, não é uma ausência de Deus, não é a presença do Demônio. A maldade é a desumanização criada pelo autorreferenciamento, após impasses não enfrentados, limites não aceitos."
Antes o homem era pensado como criatura criada por Deus; agora o homem é pensado como resultado de sua bioquímica, sua estrutura genética e seus neurotransmissores. Quando "criaturas", os mestres eram os paramentados eclesiásticos; hoje os rituais são executados pelos representantes da grande indústria farmacêutica. Novos paradigmas, novos limites e se antigamente havia dificuldade em admitir que existiam animais com aparência humana, porque isso destruiria a idéia da criatura semelhante ao criador, do homem a imagem de Deus, hoje fica difícil admitir que tudo que acontece ao homem depende das relações que ele estabelece com o outro, consigo mesmo e com o mundo.
Abraço
Vera, esse último comentário seu daria um novo artigo! rss...
ResponderExcluirbeijos.
Olá Vera, obrigada por sua bela resposta. De fato acho o seu livro "Desespero e Maldade" um dos mais intrigantes e interessantes de sua obra, principalmente por tocar um assunto tão espinhoso e mesmo obscuro, como o da maldade, tema que angustia a todos nós e que você trata com tanta clareza.
ResponderExcluirEntendi, por este seu último comentário, que você questiona a própria noção de humanidade (seja ela definida por teólogos, seja por seus opositores humanistas seculares) e foi por isso que citei antes a sua definição "a essência humana é possibilidade de relação" porque a acho de extrema precisão, resolvendo mais esse dualismo entre laicismo e teologia. Você dá verdadeiros "pulos do gato" mentais… rs. Por mais que filósofos materialistas tenham questionado a "natureza humana", sempre o fizeram dialogando com teólogos, ou seja, no contexto deles e aí afirmar a 'razão', a 'biologia', o 'organismo', a 'matéria', a ciência é o mesmo que afirmar o 'espírito', a 'alma', o misticismo - algo sempre escapa em meio a esta discussão. Para mim você resolve isto magistralmente.
Abraço
É Ana, sempre o todo como somo das partes.
ResponderExcluirAbraços
Oi Vera e Ana tenho que comentar que o artigo é realmente esclarecedor e soa com muita clareza, entretanto os comentários também são maravilhosos.
ResponderExcluirObrigada Rosélia.
ResponderExcluirBeijos
Olá Rosélia, obrigada pela parte que me toca. Vera nos inspira a todos com a criatividade e originalidade de seus escritos.
ResponderExcluirAbraço
Vera, acho interessante no seu artigo que você não somente descreve como se estruturam as relações mas também por que, o que abra muitas possibilidades de entendimento. Muito bom.
ResponderExcluirAbraço,
Augusto