Sobrevivente não questiona

A imanência do ser humano é biológica. "Essa estrutura biológica está em um lugar, em um tempo com outros seres. Estabelecemos relações percebendo, conhecendo. Perceber é conhecer, perceber que se percebe é categorizar. Essa categorização é o estar consciente de, é o saber que sabe." *

No mundo da sobrevivência tudo converge para a satisfação de necessidades, de desejos. Os julgamentos e valores, neste nível, são binários: bom e ruim, satisfatório e insatisfatório, lucro e prejuízo, eu e outro. A pregnância da imanência biológica desumaniza, não há antítese, consequentemente a dinâmica, a dialética do processo é transformada em paralelas: bom ou ruim, igual ou diferente. Psicologicamente, as vivências são desenvolvidas através de divisões paradoxais: o que apoia oprime, o marido que espanca é o que sustenta, o patrão que explora é o que permite a sobrevivência da família, por exemplo. Estas contradições não possibilitam antíteses, não permitem resultantes pois são mediadas pela avaliação do ser sobrevivente.

Ao avaliar, se exerce mediações neutralizadoras de possíveis antíteses. Examinando o lado bom e o ruim, deve-se aproveitar o bom. Este foco polariza o comportamento da sobrevivência. O sobrevivente não questiona a contradição pois um dos seus aspectos é o apoio e o outro é a ameaça, o perigo. Segurando-se no lado do apoio, só percebe o que ameaça, não percebe a contradição com seus dois aspectos, experimenta o que dá segurança como contexto de bem-estar (não se enxerga o próprio chão que se pisa, embora se enxergue o chão em volta).

O ser oprimido pela contradição não questiona, tanto quanto não exerce solidariedade, tampouco tem clareza sobre os próprios problemas, embora exorbite nas soluções buscadas. É frequente não se perceber a solidão, o medo, o vazio resultante do estar comprometido com o casamento a manter, o emprego a defender, por exemplo. Só se percebe a injustiça, a falta de relacionamento, o abandono causado pelos outros. Estruturam-se assim, raiva, inveja, medo etc.

Quanto maior a exploração, a opressão, maior a revolta e quanto mais ela é mitigada (é o clássico "panem et circenses" **) mais é mantida.

O sobrevivente não quer mudar, ele quer conseguir, quer se adaptar e ter seus desejos atendidos.

Não existe contradição, não existe antagonismo no nível de sobrevivência, as possibilidades foram transformadas em necessidades. A contingência, a circunstancialidade (consumo ou não consumo por exemplo) soterra qualquer dinâmica existencial.

Uma das funções da psicoterapia é recuperar a possibilidade de estabelecer antagonismos, antíteses, de questionar. O início do questionamento é o início do processo de humanização. Apenas sobreviver nos animaliza, nos deixa a mercê de estruturas que nos manipulam, governam e orientam.

* "A Questão do Ser, do Si Mesmo e do Eu", Vera Felicidade A. Campos, pag. 19
** "Cobiça e prazer, panem et circenses - eis o que move as massas quando as desampara a crença de liberdade e da dignidade popular." - José de Alencar, Cartas de Erasmo, II






- "Primeiro como tragédia, depois como farsa", Slavoj Zizek

verafelicidade@gmail.com

Comentários

  1. Original, inteligente, preciso, coerente, impactante, iluminador... e tantos outros qualificativos que o melhor seria o silêncio admirador no qual caí ao ler este seu artigo, Vera! Mas, para não me posicionar numa ausência de comunicação e também porque em seguida vem a inevitável auto-crítica que seus textos me induzem, aqui estou novamente, escrevendo muito. Este 'post' é uma bela continuação do anterior, fica claro como o ser posicionado vive em função das próprias necessidades, incapaz de ser solidário, empático, espontâneo, incapaz de aceitar limites, enfim, "a pregnância do biológico" (como você diz), da conveniência, é a negação do humano. É mesmo este espetáculo contemporâneo de "salve-se quem puder, cada um por si". O que me intriga é como nós, sobreviventes, nos fragilizamos com esta atitude e ainda assim a mantemos! Claro que até ao ponto em que a fragilidade nos impede a manutenção: somatizações. E ainda tem isso que você diz no final do artigo e poucos se apercebem: "Apenas sobreviver nos animaliza, nos deixa a mercê de estruturas que nos manipulam, governam e orientam."

    Nos satisfazemos com pouco: "pão e circo"! É muito alto o preço do egoismo. E por mais que sejamos iludidos, eu não acredito que não tenhamos momentos de lucidez. Não somos vítimas, somos coniventes.

    Muito bom este artigo! Obrigada.

    Abraço

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  2. Vera e Ana,

    Nunca me esquecerei do dia em que assisti a grande pianista Cristina Ortiz, baiana, tocar no Wigmore Hall em Londres. O concerto foi magnifico, mas emocionante mesmo foi o final, quando a platéia permaneceu em absoluto silêncio, como se não quisesse espantar a mágica daquele momento com palmas. Um momento que pareceu eterno, até a platéia levantar de uma vez e ovacionar a pianista.

    Lembrei desse dia ao ler seu comentário, Ana.

    Eu costumo ser dessas que "se posicionam na ausência de comunicação". Muitas vezes para não "quebrar" a mágica do momento, mas, muitas vezes mais, por conveniência, receio de ser inconveniente, ou mesmo conivência.

    Felizmente, sempre há em cada um "uma gota de humanidade" ( como bem disse a Natasha ao comentar um outro artigo) que possibilita questionar nosso estado sobrevivente e ainda conseguimos nos encantar ao apreender o poder transformador destes artigos.
    E bater palmas, muitas palmas!
    Abraço,
    Milena

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  3. Obrigada Ana! A conivência existe porque tudo converge para a satisfação de necessidades, desejos, medos, como escrevi; seu comentário complementa o que 'postei'.

    Abraços

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  4. Milena, gostei de como você integrou tudo, nada como "alma de artista".

    Beijos

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  5. Obrigada pela resposta, Vera. Um abraço

    E Milena, muito bonito e sincero seu comentário; obrigada por mencionar-me. Eu acho que o silêncio é, muitas vezes, ausência de comunicação, mas é pleno de vivência... e vivência maravilhosa como esta que você descreve diante da arte ou aqui, diante de idéias transformadoras. Um momento de pausa que nos revigora. Abraço

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  6. Totalmente! :-)
    Abraços
    Milena

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  7. Vera e Ana,
    Faltou o "de acordo": "totalmente de acordo", eu quis dizer.
    Beijos
    Milena

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  8. Vera, ler esse texto e um golpe de ar fresco e limpo.
    Abraço,

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